terça-feira, 8 de julho de 2008

A consulta

"Vamos amor!", diz-lhe ela apressada. Já falta pouco para a hora da consulta de ginecologia no Centro de Saúde. Ele pede-lhe ajuda para ajeitar a camisola. Ela ajuda-o um pouco atabalhoadamente. Não está muito interessada nisso das camisolas e das calças e mais dos peúgos e cuecas, só tem cabeça para aquela consulta. A consulta.
São oito da manhã. O movimento na rua é estranho: Há pessoas que se levantaram cedo para comprar o pão e levar os miúdos à escola, outras há que ainda não se deitaram. Nas pastelarias e cafés, os balcões estão apinhados de gente que trinca desalmadamente o pastel de nata enquanto engole a meia de leite sem qualquer tipo de sentimento. Cá fora, debaixo dos toldos, fumam-se os primeiros cigarros da manhã e contam-se histórias da noite anterior ou as últimas peripécias do filho mais pequeno.
Estas duas personagens, ele e ela, sobem apressada e alegremente a rua, compondo este cenário matinal, tornando-o ainda mais colorido e estranho. Ela vai à frente, sorrindo para tudo e para todos. Passa num toldo e pede um cigarro a um estranho que a trata por tu. Olha para trás. Lá está ele a tentar apanhar-lhe o ritmo com aquele ar de quem a discrimina por causa do vício. Discrimina-a mas nunca, mesmo nunca, a deixa de amar.
No centro de saúde, depois de muito alarido a cumprimentar todos os funcionários, desde os administrativos à classe médica, tiram finalmente uma senha e sentam-se a aguardar a sua vez. A vez dela. É hoje o dia em que tudo vai mudar, pensa para com os seus botões. Pensa nisso e em como cravar mais um cigarro.
Às dez, ouve finalmente o seu nome e entra. E pede que ele a acompanhe. "Vim aqui por causa do diafragma, Doutor. Quero tirá-lo porque quero engravidar". O médico fica incrédulo. Mas não se desfaz. Examina-a, pede-lhe que ele se retire e arranja uma forma de fingir que extrai o maldito aparelho. Aparelho que não existe, que nunca existiu. Laquearam-lhe as trompas quando teve o primeiro filho, porque souberam o que lhe esperava caso não o fizessem.
Ela sai toda contente no final da consulta. Besunta a cara do médico com tanto beijo de agradecimento. A seguir, besunta a cara dele e empurra-lhe a cadeira com o maior carinho do mundo.
Foi melhor assim. Se soubesse a verdade não suportaria, teria ataques, voltaria às crises. Assim acredita que vai conseguir ser mãe outra vez. Que ela, toxicodependente esquizofrenica, conseguirá constituir uma família com o seu namorado paraplégico, tal como os comuns mortais. E não há nada mais valioso do que a felicidade dessa ilusão.

2 comentários:

Anônimo disse...

bem, juntaste-os todos

ehehe

Pedro Horta disse...

Não conhecia esta tua faceta. E há 28 anos que te conheço.
Beijo muito grande.