O carteiro vai tocar a todas as campainhas. Vais acordar
feliz. É hoje. Não, não é. Meia-dúzia de jornais deixados dentro da meia-dúzia
de caixas de correio existentes. As últimas promoções do supermercado, já as
sabes de cor. É lê-las e relê-las enquanto te deixas estar sentada na sanita.
Muita carne e nada que te apeteça. O vizinho dir-te-á bom dia, apesar de
saberes que ele não quer nada contigo. Ainda há dias se queixava por teres
feito barulho ao chegar, algures num sábado de madrugada. Tenho ideia que eram cinco da
manhã, hora local. Os pássaros já cantavam, nas árvores. A tua casa, um império
de cinza perdida, por cinzeiros, pratos, copos, chão. A higiene há muito que
não te visita. Nem o teu pai, pensarás tu. Permaneces quieta, na cama, com a
ideia fixa de que amanhã haverá correio para ti. Uma carta manuscrita, um
endereço legível, um beijo de despedida. Um encontro marcado e tu ousarias
tomar banho, maquilhar-te. Eventualmente usar aquele perfume que continua literalmente
na prateleira, selado (a tua madrinha que não o sonhe). O carteiro tocará todas
as campainhas com o mesmo desdém que se levanta todas as manhãs. O mecanismo
fisiológico dele é muito parecido com o teu, só que ele tem – ainda! – um trabalho.
Desdenharás, mal abras a caixa do correio, todos os seres que te ignoram e que
negligentemente te fazem infeliz. Correrás escada acima com o jornal na mão,
acompanhado por três ou quatro folhetos destinados a potenciais turistas seniores.
Estás na idade em que não és a carne que tanto repudias, nem o peixe que tanto
evitas. És um nem-uma-coisa-nem-outra. Adorarias ser uma alface, fresca e
viçosa, comodamente arrumada na gaveta do frigorífico. Mas não fazes por isso.
Vestirás outra vez o pijama. Terás a certeza que não te apetece comer nada
daquilo que vem promovido no jornal, nem tão pouco o presunto que vem de oferta
com uma viagem a Badajoz. Saber-te-ás sozinha, neste espaço que habitas, mas
também em todos os outros que possas vir a habitar. Pode ser que morras
acompanhada, numa desgraça qualquer, por meia-dúzia de pessoas tuas
desconhecidas. Nunca se sabe. Corre as cortinas, pelas minhas contas já passará
do meio-dia. Mete-te debaixo das mantas. Falta pouco para
anoitecer, basta sonhar. Basta crer que amanhã será outro dia.