quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Amor Urbano

Amor urbano,
Salpicado pela água da chuva que salta da calçada.
Que te molha os pés,
Que te suja o coração.
Amor calçada, dentro da tua urbe,
Imundo na sua essência.
Amor decência.
Amor carência.
Uma cidade inteira dentro de ti.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Era quase Natal

Era quase Natal e ele ainda não tinha dado por nada. Deitado no colchão encontrado, quase novo, encostado a um balde do lixo, passeava o olhar pelas fotografias dela. Descoloradas, as fotografias, reorganizavam-se nas suas mãos. E ela mantinha, em todas elas, os mesmos olhos, os mesmos lábios, o mesmo nariz.
Era quase Natal e ele acostumava-se ao cheiro estranho do colchão encontrado, quase novo, encostado a um balde do lixo. Acostumava-se ao duche rápido de água fria e à sopa, também ela fria, trazida por uma vizinha beata. Era quase Natal e as outras beatas, de tabaco de origem duvidosa, acumulavam-se entre o colchão e a porta do quarto. Ou o que restava dela.
Era quase Natal e, dos dedos encardidos não convencidos do fim daquele amor, nasciam novos cigarros e reorganizavam-se as fotografias, na esperança vã de um sinal. Recordavam-se encontros, beijos e abraços, noutros colchões, noutros quartos, noutros tempos.
Era quase Natal e não se lembrava que tinha fome, que a sopa fria podia arrefecer ainda mais e que as moscas acabariam por cair dentro dela e lutar até morrer. Era quase Natal e preferia afastar-se do prato e refugiar-se no quarto, segredando aos retratos palavras de amor, promessas de uma vida melhor, saudades absurdas e obscenidades permitidas.
Era quase Natal e ele, sem dar por nada, morria afogado em memórias inventadas, num colchão desfeito, encontrado no lixo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Inércia

É desta inércia que falo, quando nada digo.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Agora faz sentido o sentido que faz quando me deito e sonho e acordo e vivo.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Do altruísmo e outras vaidades encapotadas

Venho duma terra de loucos. Lá, em cada esquina, há um amigo. Um amigo, que também é um louco, como convém na terra da fraternidade, que o nosso país tanto canta em uníssono em vésperas de feriado nacional. Há o louco que nos pede somente cigarros. Há o louco que se senta connosco na mesma mesa de café e monopoliza a conversa. Há o louco que é surdo, mas sabe cantar. Há o louco que se desloca na sua cadeira de rodas ao lado da sua ex-namorada que também é ex-toxicodependente. Há o louco que nos ofende. Há o louco que nos julga loucos. Há o louco de quem fugimos e há também o louco de quem nos rimos.
Se houvesse em iguais proporções médicos e loucos como na velha máxima "de médico e de louco todos temos um pouco", a terra de onde venho teria uma relação de um médico para cada dois habitantes. E seria o melhor sítio para se viver em todo o Portugal continental.
Vem isto a propósito das conversas que se têm por estes lados, nesta internet que nos afasta da realidade e nos consome todos os dias, mas que malfadado destino, é quem nos permite manter o contacto com os amigos que se espalham pelo mundo e talvez também alguma sanidade mental.
Um amigo perguntava-me, a propósito da morte do Senhor do Adeus, se eu tinha ido ao evento-homenagem que se realizou ontem no Saldanha, onde vários populares se juntaram para acenar aos carros, tal como o recém-defunto fazia todas as noites para aqueles lados.
Fui convidada para ir assistir e participar nesse evento-homenagem, mas recusei. Senti-me um pouco tentada, é certo. Dentro de mim, em torno destes eventos, há sempre uma certa curiosidade a três níveis: sociológico, antropológico e psicológico. Porque considero-os, sobretudo, cultos mórbidos onde os seus participantes sentem uma forte necessidade de aparecer e ser vistos. E apetece-me estudá-los, no seu habitat, para perceber que genes influenciaram o desenvolvimento deste tipo de humanos, que hábitos sociais os caracterizam e como é que eles próprios pensam e actuam. Contudo, meti esta minha curiosidade no sítio donde nunca deveria ter saído e apanhei o comboio até casa. Pois não há nada melhor, para uma misantropa assumida como eu, do que chegar a casa e ficar finalmente a sós consigo mesma.
O meu amigo, disse-me que se achava 'besta' por condenar estes eventos e não conseguir perceber o que move as pessoas que os patrocinam. Eu não o considero besta, na medida em que percebo perfeitamente as pessoas que não se enquadram no perfil que é comum àqueles, que ontem, estiveram um par de horas a acenar para os carros e para as câmaras que por ali fotografaram e filmaram. Se o meu amigo é besta, eu sou uma real besta, porque para além de sentir o mesmo que ele, ainda me dedico a escrevê-lo aqui na blogosfera, à mercê dos olhos e das interpretações de todos e quaisquer tarados à solta que vêm parar ao meu blogue por pesquisarem no google "gordas em cuecas".
Nunca me consegui enquadrar em certas e determinadas manifestações populares. Desde miúda que me arrepiam as aulas de ginástica e as visitas de estudo a Lisboa. Até sei fazer a ponte melhor do que ninguém e adoro aprender para além das quatro paredes do meio onde vivo, mas odeio ajuntamentos, coisas feitas em grupo, cantorias e piadas que são cantadas e contadas por toda a gente. Odeio carneiradas, coisas que nos anulam em prol de um todo. E o todo - meu Deus! - ri-se e canta qualquer anormalidade e sente-se orgulhoso da figura que faz, do número que é capaz de juntar.
Convenhamos que o Senhor do Adeus era um louco. Como não o conhecia pessoalmente, posso afirmá-lo sem vergonha nenhuma na cara. Sei que não o era totalmente, porque li algures, que se tratava de um cinéfilo e melómano que, como bom aristocrata que se preze, vivia do dinheiro da família. Mas, mesmo tendo lido o que li, considero-o um louco. Um louco que achava que trazia mais alegria às pessoas, por passar horas a fio, todos os dias, a acenar-lhes um adeus, depois do jantar e antes da cama, ali para os lados do Saldanha. E que era - aparentemente - feliz. E é aí que me permito ter alguma empatia por este ser, porque são poucos, muito poucos, aqueles que realmente se consideram felizes. Considero, desde que reflicto mais a sério sobre esta coisa da condição humana, que a loucura é meio caminho andado para a felicidade.
Reflicto também, desde ontem, sobre as motivações de quem foi até ao Saldanha participar na dita homenagem e sobretudo sobre quem se lembra de homenagear e referir sem parar outro alguém, quando este morre. E acho que se trata tudo de uma grande treta.
E aqui entra a grande besta que eu sou, mais do que o meu amigo (perdoa-me, mas sou mesmo mais besta do que tu, apesar de me apresentar nesta fraca figura, muito mais frágil que o teu viril caparro), porque venho duma terra de loucos, onde todos são castiços à sua maneira e, entre os quais, até há quem saiba escrever muito melhor do que toda a blogosfera junta. Por tal, julgo ter legitimidade mais que suficiente para não ver utilidade nenhuma em exéquias. Todos nós (eu incluidíssima), não fizemos mais do que passar as nossas vidas a rir a plenos pulmões das loucuras dos loucos das nossas 'aldeias'. Por isso, tudo o que seja do domínio post mortem não passa duma grande farsa que não serve nenhum dos interesses dos mesmos, por muito loucos que tenham sido.
Do adeus colectivo de ontem, está tudo dito. Trata-se de um aproveitamento da morte de um senhor, que por muito funcional e intelectual que fosse, não passava de mais um louco aos nossos olhos: olhos de pessoas que ali o viam acenar todos os santos dias e não o imaginavam sequer capaz de juntar duas palavras, quanto mais de admirar e conhecer boa música e cinema. Aproveitamento, para que possamos todos nós paracer mais integrados. Possamos todos nós parecer cidadãos mais activos. Cidadãos que exercem a sua cidadania, o seu altruísmo e a sua vaidade, todos juntos no mesmo prato, onde dias antes, provavelmente cuspiram.
Enfim, como nos tempos da ginástica e das excursões, nunca me enquadrei nestas coisas da sociedade. Exerço uma outra cidadania, menos visível, menos gabarolas. Presto culto a pessoas, umas apenas loucas outras completamente insanas, convivendo com elas todos os dias. Falando-lhes e tentando absorver o melhor que elas têm a dar ao mundo, enquanto seres vivos e pensantes que são. Abraçando-as e amando-as. Acenando-lhes adeus à sua passagem por mim.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Desfocamo-nos

Desfocamo-nos perante o mundo.
Eternos seres desfocados.
Mortos.
Enterrados.
Recriados em pequenos paraísos paralelos.
Onde deambulamos, imaginados.
Sozinhos, belos.

Desfocamo-nos perante o mundo.
Perdidos seres de miséria que fomos.
Perdidos na ambição frágil que tivemos.
Estremecemos perante os ecos longínquos
Dos nossos entes defuntos.
E recriamos, orgulhosos, memórias infelizes,
Histórias impossíveis,
Silêncios desesperados.

domingo, 31 de outubro de 2010

Naftalina

Espalhei pelo armário - escrupulosamente - as bolas de naftalina. Nunca pensei que começasse a cheirar a velha tão nova.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os Dias


Absortos são os dias em que vivo
É a luz que me fustiga
Por não ser mais nem menos que os outros todos
Por ser simplesmente igual e paradoxalmente inconformada.
Anestésica é a dor que me dá na alma e que se espalha velozmente por todo o resto que me pertence e me transcende.
Para que eu seja um pouco de anestesia também para além da dor que me dá gozo infligir.

Odeio a multiplicidade de espaços onde me deito,
A unicidade dos seres que tentam à força de amor me fecundar,
A diversidade de odores que me perfumam enquanto espreito e procuro
Um futuro melhor ou talvez o mesmo presente um pouco mais garrido.
Aplaudo os significados e os significantes de todas as insignificâncias
Que me fazem chorar, rir e talvez sonhar.

Sou tudo um pouco menos que todos os restos que deixo escrupulosamente no canto do prato.
Se amo, é porque toda a envolvente me diz que não há nada mais interessante para fazer.
Se não sou correspondida, mais uma razão tenho para beber um copo de vinho.


(por falta de imaginação, volto a publicar este velhinho post. Desculpem-me aqueles que já o conhecem)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Deixo aqui Saudades

Deixo aqui saudades, na rua em que caminho e onde me é possível distinguir o fumo das chaminés do fumo das castanhas acabadas de assar. Deixo aqui saudades, num parapeito ao sol de tarde sujeito, onde vagueiam silhuetas felinas e rostos talhados pelos anos que passam. Onde se debruçam os cabelos brancos que - escassos e resistentes - enaltecem e reinventam uma distante juventude.
Deixo aqui saudades, do Outono das nossas vidas, da pessoa que fui, da pessoa que teimo em ser e da pessoa que um dia serei. Deixo aqui saudades, no conforto de um abraço dado por uns grossos braços de lã. Onde se respira relva acabada de cortar, onde se é atacado pela ternura de um grupo de petizes nos seus bibes, de par em par. Deixo aqui saudades, onde o frio se confunde com o aconchego e o aconchego se funde com o apego que tenho à terra que um dia irei deixar.
Hoje aprendi a escrever saudade: tem sete letras e mora em todo o meu coração.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Aparece e eu perdoo-te baixinho todos os meus pecados.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Tentativas

Falhei-me em tentativas. Repetidas. Só mais uma, dizia eu. E sempre, sempre a falhar.
Já as flores que cheirava, nessas primaveras férteis da minha infância, cheiravam a esgotos, a putrefacção. Fingia-lhes admiração, suposta capacidade que nunca possuí.
Algures no tempo, falhei também um número certeiro que me dava direito ao jackpot. Passando-lhe ao lado, encontrei gatos pretos e espelhos partidos. E, sobrevivendo-lhes, fugi-lhes passando debaixo de uma escadaria, agarrada a um número treze inscrito numa ferradura.
E quem me esperava do outro lado? O vácuo, sorrindo trocista ao ver-me tropeçar.


Cristina morreu. Caiu no vácuo ao pensar q pisava apenas mais uma folha seca desse Outono em que viajava. Mais uma vez. Sozinha e sem amparo.
Cristina morreu, folheando o final dum livro emprestado, com outro por estrear na mão.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Não te escrevo desde ontem

Não te escrevo desde ontem. Desde o adormecer fingido do meu pesar. Desde as frases escritas e esborratadas naquele papel amarrotado, depositado teimosamente nas tuas mãos. Não te escrevo desde que nasci, pequena e silenciosa numa cidade que nunca mais vi. Não te escrevo desde o tempo que era outro, bem melhor do que aquele que me assalta e me leva as horas que tanto gostaria de passar em ti. Não te escrevo desde o fracasso de te ter escrito e não me teres decifrado, nem uma vírgula de suor.
Não te escrevo desde ontem, a última vez que te vi. Não te escrevo desde ontem e aprisiono palavras desfiguradas, certa de que nunca irão chegar a ti.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Que raio...

... de jornalismo que se anda a praticar em Portugal!
Não bastavam já os escandalosos erros ortográficos nos rodapés dos telejornais, que me envergonham e me provocam sensações de vertigem e ataques de pânico, agora também os factos são pouco factuais.
"The Cure no arranque do Festival Paredes de Coura", foi a notícia que li hoje no rodapé dum telejornal a abarrotar de incêndios e futebolistas. Ainda pensei que tinha lido mal, mas ela, a notícia, lá aparecia uma e outra vez a rodopiar, seduzindo-me e enganando-me, a sacana! Foi por pouco, muito pouco, que não anunciei a minha partida de emergência para o norte do país.
Já de malas feitas, beijinhos de despedida dados, mas ainda antes de me dirigir à bilheteira da CP, decidi averiguar na internet o cartaz oficial deste festival, não fossem uns quaisquer Depeche Mode também fazerem parte do pacote musical. Da consulta, resulta uma agradável surpresa: The Cure não irá arrancar nada e, o mais semelhante, são uns The Cult, a quem não presto culto nenhum (precisava de pelo menos dois posts para divagar sobre esta banda).
Os portugueses, que já praticavam um divertidíssimo jogo à hora das refeições chamado " 'Bora lá encontrar a palavra que está bem escrita no rodapé do noticiário", vão ter mais adrenalina com o upgrade do mesmo: " 'Bora lá saber se a palavra que está bem escrita pertence a uma notícia verdadeira".
A todos os pantomineiros deste país, deixo o conselho de uma pantomineira-amiga: quando quiserem dar credibilidade a uma mentirinha contada aos vossos amigos, o melhor não será - definitivamente!! - dizer que viram nas notícias, mas antes: "É mesmo verdade, malta! Foi a Dona Rosa, cabeleireira da minha mãe, que me contou!!"

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vivo a sexta-feira de um dia qualquer

Gostava que me lesses a mente e me coçasses as costas, não por esta ordem sequer. Que me lesses os lábios e me voltasses a amar. Que me arrepiasses a espinha sem sequer te aperceberes.
Se te prouver, leva por aí a minha alma aos trambolhões, abandona-a descalça na areia quente da praia, grita-lhe um palavrão. Ela é tua, nunca minha.
E assim será, ou teria sido, acaso soubesses ler-me a mente, ler-me os lábios e tocar-me onde me dói.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Escuro

Está escuro cá dentro e tenho-me dentro lá fora. Onde me detenho, assustada, como se todo o nada existisse mais do que tudo em mim. Tacteio o mundo e descubro que não tenho tacto, nem olfacto e que cega, de mãos atadas, revejo a dor dos sentidos de quem os tem.

Autocrítica

Não gosto do 'post' anterior, nem doutros tantos que foram escritos aqui.

sábado, 26 de junho de 2010

Crise

Da crise, não se fala. Mal são ditas as primeiras letras, alguém muda bruscamente de assunto. Pior, é que tudo o resto de que se possa falar, entre cigarros e amigos vai parar sempre ao mesmo, por mil e uma voltas que sejam dadas lá vem ela: a crise.
Há uma crise que é acompanhada sempre pelo mesmo adjectivo: generalizada. Juntam-se-lhe os valores, as finanças, os empregos, as tristezas e obtém-se o pacote completo. É o constante contar que nada está bem, quando há o esquecimento constante de que se está entre amigos, entre cigarros e que a crise, seja de que tamanho for, ou de que credo ou cor, não conseguiu enfraquecer as amizades e os amores, quanto mais apagar as beatas já meio esborrachadas nos cinzeiros.
Mas de crise não se fala. Fala-se apenas do desemprego, da falta de dinheiro, do futuro negro que se avizinha ali mesmo ao lado, ali mesmo à esquina. Crise, a palavra, é para os telejornais e para os políticos. Uns comprados diariamente, outros eleitos por sufrágio universal. Ambos levianamente, claro está.
Há uma crise de ideias. As conversas estancam no mesmo. Do lado pessimista, a crise. Do lado optimista, o futebol. Se por malfadado acaso, alguém não gosta de sua alteza desportiva, fica-se meia-hora (ou o resto do dia) em silêncio e depois retoma-se o outro e único assunto principal, que envolve sempre a decadência social que supostamente se vive.
Há uma crise que se esquece dos olhares bonitos, das mãos que se dão. Há uma crise cega que não consegue perceber que o mar cheira a mar, que o céu é azul como sempre, que os pólens trazem a promessa de novas e mais belas flores. Há uma crise que se esquece que a chuva rega, que o sol dá vida. Há uma crise que não aprecia abraços, que não pensa nos entes queridos. Há uma crise que perdeu completamente os sentidos e negligencia um almoço de domingo acabado de fazer, um copo de vinho pronto a brindar. Há uma crise que não percebe que um corpo molhado e salgado é mais belo que outro qualquer que apareça esculpido nas primeiras páginas desses jornais que só vendem crises.
Há um crise que ofusca. E dessa tenho medo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Ela

Ela corre. Ela corre sempre. Em busca de algo. Ou em fuga. Os anos passaram e as memórias, vingativas e penosas, persistiram em acompanhá-la para onde quer que fosse. Sabia-se sábia, mas não possuía sabedoria suficiente para fugir ao passado do qual tentava escapar. O passado acompanhava-a. O passado dormia com ela e desenhava-lhe sonhos pesados. Pesadelos. O passado brincava com ela. O passado dominava-a e devolvia-lhe todas as personagens que compunham o enredo desse triste e longo tempo ido. Tinha sido uma sereia.

Ele

Ele caminha. Há ali perto um balneário público onde poderá tomar um banho. Há por ali perto, também, alguém que lhe oferece um café e um bolo. Há por ali as saudades de alguém ausente. Dele próprio que jaz no passado. Um corpo transpirado implorando paz. Uma janela aberta com um cortinado esvoaçante tentando fugir. Um vulto feminino. Um fulgor masculino. Há por ali perto essa memória de ter sido ontem, e não antes de ontem, alguém guerreiro armado nos braços de alguém. Barricado nas coxas da sua fêmea. Alguém que vence a batalha que travou uma noite inteira ou até quando foi possível ter a persiana corrida e a ilusão dessa escuridão sussurrada em tempos de guerra. E não foi capaz.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Era eu

Era eu quem pisava espelhos partidos, contrariando o compasso do tempo, revertendo o caminhar, regressando ao princípio, voltando a pisar.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dão-se Estalos

Por módica quantia, a quem tiver um ataque de histeria incontrolável.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Arrenda-se

Quarto simpático com serventia de cozinha e casa-de-banho em blogue muito escuro.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

quarta-feira, 31 de março de 2010

Banco de Jardim

A piada não estava, obviamente, na criança sentada naquele banco de jardim, brincalhona e esperta, sorrindo ao mundo com a sua inocência feliz, mas sim no velho que se tinha sentado a seu lado, morto.

terça-feira, 23 de março de 2010

A Escritora II

E a partir de agora, deixa-te estar aí sossegada. Sentada e ausente. Não escrevas mais nada. A tua escrita tornou-se saturante. Ninguém mais te compreende e o que tu pensas jamais fará sentido.

quinta-feira, 18 de março de 2010

A Escritora

Quando a liam, violavam-na um bocadinho. E era isso que lhe doía: não a dor de escrever, mas a dor de ser dada a ler.
Gostaria de ditar os seus textos e fazer deles ditaduras onde não coubessem livres interpretações, nem tão pouco conclusões pouco precisas sobre a sua personalidade.
Daria às palavras um só significado: o seu. Nenhuma palavra, sendo sua, poderia correr para braços alheios significando outra coisa que não aquela em que fora pensada antes de ser escrita.
Seria assim que gostaria de ser lida, doutra forma, não faria sentido, pois não seria sua a escrita.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Chovia II

Sempre o inquietara a forma hipócrita como os homens da meteorologia anunciavam que amanhã iria ser mais-um-lindo-dia-de-sol. Por diversas vezes, cuspiu no televisor depois de ouvir - outra vez! - essa mentira. Por diversas outras, chegou a dar um pontapé no balde que amparava a água que vinha do tecto. Foram muitas as noites em que observou a água do balde a espalhar-se pelo chão da sua pequena sala. Foram muitos os dias em que resmungou obscenidades acerca das mentiras recorrentes dos homens da meteorologia.
Chegava mesmo a ficar constrangido ao ver os seus vizinhos saírem de casa, carregados de filhos e demais familiares, sem um único guarda-chuva. Sem um único impermeável, meu Deus!! Sentia-se envergonhado com a loucura alheia, com a negligente forma como as pessoas lidavam com a chuva. Escondia a cara, corava, pedia perdão e mudava de nacionalidade sempre que visionava aquele espectáculo decadente protagonizado pelas pessoas debaixo de chuva.
A ele, era cada vez mais complicado perceber porque os meteorologistas teimavam em mentir e porque é que as pessoas se deixavam enganar, ignorando que o céu que contemplavam estava apenas negro de chuva sempre a cair.
Perdeu a cabeça, quando nem em casa conseguiu escapar à eterna intempérie: chovia em todas as divisões; o balde da sala já não era suficiente para amparar a água que se infiltrava em toda a estrutura; o sofá e a cama, ensopados, eram a personificação do desconforto; a humidade entranhara-se nos seus ossos e nos seus bens; os seus dedos, engelhados, já não tinham cor nem força, nem tão pouco reflectiam vida; os seus livros eram pasta de papel e tudo o resto, bolor.
Acreditando num sol brilhante e quente para além da morte, afogou-se na banheira com a água da chuva recolhida pelo balde da sala, a mesma água que já há muito o apagava dos anais da humanidade.
Tranquilo e alheio à chuva que teimava em cair, encheu os pulmões de água e deixou-se entrar numa outra dimensão. Num misto de lucidez e irrealidade, de fé e clarividência, findou-se a meio de um murmúrio: As pessoas! As pes-so-as! Meu Deus, perdoai-Lhes!

Chovia

Chovia desde que se lembrava de si. Chovia desde aquele dia em que fora concebido, com amor e suor, pelos seus pais. Chovia, desde então, até ao dia que hoje era: homem, certo de vir a encontrar o sol num dia próximo, no fundo de um corredor, na esquina de uma rua, num sorriso alheio, numa chávena de chá.
Chovia naquela calçada que subia apressadamente. Das telhas, caía água enraivecida que lhe batia no guarda-chuva como se o quisesse rasgar. Chovia até ao fim da subida. Chovia em todas as pedras da calçada, em todos os degraus, sem excepção. Chovia-lhe em cima, mesmo quando abrigado num toldo de café.
Todavia, era da chuva que tinha saudades. Da chuva promissora dos primeiros dias de aulas, das poças de água que desafiava com as suas botas de borracha, da lama que trazia para casa. Era o som da chuva a mais bela melodia que tinha ouvido, tocada em telhados de zinco, em janelas, em árvores. Sempre perfeita.
E só tinha conhecido a chuva, em toda a sua vida. Nada mais do que chuva. Forte, fraca, aguaceiros e temporais. Sempre a chuva! Mas o sol...
O sol haveria de chegar naquele dia que era hoje. Apressado que estava em viver mais este dia, nem se tinha dado conta que o primeiro raio de toda a sua vida, lhe inundava o rosto e lhe tingia as faces de um tom rosado. E não era preciso ter encontrado o amor. Não se tratava de encontrar o amor, de ver noutro rosto a metade que lhe faltava. Não se tratava de nenhum romance épico nem de nenhuma interminável novela. O sol, não era isso e, por isso mesmo, era muito mais.

*

Por vezes, as pessoas esquecem-se que o sol aparece quando se fecha o guarda-chuva. Ele esquecera-se disso a vida inteira, até ao dia que era hoje.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Nada para dizer

Nada para dizer. Nada para falar. Nada para contar. Nada para soletrar. Nada para difamar. Nada para gozar. Nada para ostentar. Nada para confessar. Nada para esconder. Nada para rir. Nada para chorar. Nada para apontar. Nada para segredar. Nada para rimar. Nada para aborrecer. Nada para enojar. Nada para fingir. Nada para reclamar. Nada para duvidar. Nada para enganar. Nada para olvidar. Nada para enternecer. Nada para dizer.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Desespero e esperança. Saem-nos das bocas e pairam no ar, mesmo à frente dos nossos olhos. Cegos, os olhos, o desespero e a esperança. Repetem-se e trocam-se: esperança e desespero. Olhos.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

À menina que habita os meus sonhos, vou dizer que o Papão já não tem mais fome, que os medos estão todos fechados a sete-chaves numa gruta distante. Vou dizer-lhe que o sol derrete os monstros e que as brincadeiras repelem os maus. Não lhe vou mentir, porque é tudo verdade.
E ela, finalmente, poderá percorrer o mundo na sua bicicleta vermelha.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Grãos de Areia

O amor que lhe tinha era tanto quantos os grãos de areia que fechou na sua mão naquele longínquo dia, naquela longínqua praia. Tentou contá-los, um a um. Embebedou-se com o brilho desse punhado de milhares de milhões de grãos de areia e percebeu-os doutra maneira, ali mesmo enquanto os observava. Eles eram a eternidade que ele nunca poderia alcançar. Eles eram os anos que irremediavelmente ficavam por viver até ao fim da eternidade. Eles eram os curiosos e brilhantes seres que habitavam o mesmo planeta que ele, mas também outras galáxias, e que ele jamais iria conhecer. Eles, pequeninos e infinitos, eram mais do que aquilo que alguma vez viria a ser. E uma gaivota riu-se.
Passou um Verão inteiro, mergulhado em grãos de areia, enquanto ela, sua adversária, bronzeava o corpo já moreno e lambia, secretamente, o sal parasita que se depositava nos seus braços de sereia. Ele amava-a, mas tinha descoberto que mais importante que esse amor infinitamente belo eram os grãos de areia. Esses tais que o metiam a pensar e a engendrar esquemas matemáticos para escapar à mortalidade humana que desprezava. Ele podia ser uma hipótese eterna. Ele podia ser um quebra-cabeças que milhares de milhões de homens, tão minúsculos e interessantes quanto os seus grãos de areia, iriam estudar e nunca, em parte alguma das suas contas, iriam perceber.
Desafiaria toda a ciência e até o próprio e hipotético Deus, ser omnipresente a quem recorria quando não tinha sequer dinheiro para pagar a uma prostituta por um quarto de hora ou uma hora num quarto. Tarde demais. Os grãos fugiram-lhe por entre os dedos. A sua sereia, seca e salgada, aconchegou-se e adormeceu e sonhou com ele. E ele viu e ouviu tudo e compreendeu: era estar ali, no melhor dos melhores momentos da sua vida, ou era partir de encontro à eternidade.
Anos confusos e escuros passam-lhe pelos olhos e quase esquece essa história da praia. Lava-se com água morna e um sabão azul e branco. Veste roupa interior lavada e há quem lhe ofereça umas peúgas novas e quentes. Faz a sua rotina, desde o banho ao pequeno-almoço. Esquece que já foi alguém que esteve perto de descobrir a chave da imortalidade. Ofende esse mesmo ser omnipresente que outrora desafiou. Depois arrepende-se e pede-Lhe desculpas e oferece-se para Lhe limpar a casa.
O mundo tornou-se numa aldeia grande, onde toda a gente o conhece e despreza. Conclui que o seu velho fato já a nada nem ninguém impressiona. Mete nojo aos mais novos e pena aos mais educados. Mas ninguém lhe oferece mais do que um olhar expressivo. E é aí, perante esses olhares de nojo e pena expressos, que se recorda dela e se arrepende para o resto dos seus dias. De tudo. Dele próprio. Do nojo que se tornou. Do banho diário e da caridade cristã. Da devoção que ele próprio teve por esquemas erráticos e contas envenenadas. De nunca a ter olhado nos olhos. De nunca ter recolhido dos seus lábios a simplicidade do sentimento mais complicado e cobiçado por todos: o amor.