quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O Tempo

Estava habituada ao tempo de Lisboa, era por esse que me regia. Esse tempo apressado, sempre a escassear, pelas ruas estreitas do meu velho bairro. Quando o meu pai me levava ao comboio, naquela outra terra que já tinha sido minha, eu desesperava com a calma do tráfego e dos transeuntes e mal podia acreditar quando quinze minutos permitiam, sem nervos nem pressas, beber descontraidamente um café ao pé da estação.
Brincava então com pacotes de açúcar cheios, prontos a serem depositados na minha mala de mão. E pensava: que raio de tempo é este, que escorre-nos pelos dedos tal como mel? Peganhento, tempo que não nos larga, lento até chegar ao chão. E, no entanto, foi aqui e não noutra terra de tempos mecânicos que vi toda a gente envelhecer apressadamente, apesar do seu andar em câmara lenta. Foi aqui que presenciei a morte, em passos apressados, a caminho do cemitério. Foi aqui que doenças e acidentes ceifaram mais vidas do que todas as vidas que conheço na capital.
Erradamente, dizem-nos que o tempo somos nós que o fazemos. Não, o tempo vive agarrado aos sítios e às pessoas, correndo para nos dar a ilusão que muito de si já passou, estagnando para nos pregar a partida sádica de que afinal, mesmo parado, consegue deixar-nos rugas e cicatrizes.
Sou do tempo em que o tempo se queria acelerado, para que as aulas acabassem depressa, para que as férias chegassem, para que os aniversários nos trouxessem os dezoito anos e mais as idas para a universidade e a promessa de que tudo correria de feição, a nós seres pré-emancipados.
Olhando para trás, vejo um tempo turvo, ressabiado, estragado pela idade e por estes impulsos de o pôr sempre em marcha. Tempo velho e sujo, que me faz manguitos e me amaldiçoa em vésperas de aniversários, casamentos e funerais. Que mete criancinhas crescidas nos colos dos amigos, para fins paternais ou outros mais obscuros, que tinge o cabelo de branco a pessoas que sabíamos serem para sempre jovens, que nos dá dores nas costas e contas para pagar.
Tempo que me faz correr, rumo à capital, de volta às ruas estreitas do meu velho bairro, quando nada me faz entender a pressa que tenho para apanhar um comboio que se sabe sempre atrasado.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Quando o coração batia forte,
As grades apertavam-no e ele deixava de respirar.
E nesse momento claustrofóbico,
Lembrava o dia em que esvaziei os bolsos,
Desapertei o cinto,
Baixei as calças,
E defequei na tua vaidade.

Dias de luto se seguiram,
Em que a luta constante contra aquilo –
Aquilo que prende o coração,
E o outro aquilo –
Aquilo que o denunciou e o empurrou para o cárcere,
Se revelou inglória,
Porque aquilo que o prendia e aquilo que o denunciara e o empurrara,
Tinham despertado
Para aquela paixão que une os seres,
Quando estes protestam contra um só mal.
E desde então,
Andam por aí,
De mãos dadas,
Olhares cúmplices,
Trocando carícias provocatórias.

Como se eu já tivesse acabado de defecar,
Como se as grades se tivessem quebrado
E andasse por aí
Um coração a saltitar.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Vestido Azul

Visto secretamente o vestido azul, aquele com que me imaginas a abrir-te a porta, a mostrar-te as divisões da casa, a convidar-te para um striptease lento, rebuscado, numa manhã de cheiros invernosos. Caí na armadilha de te incitar à violência doméstica, de mordaça na boca, ajoelhado, a contemplar-me, a pedir-me outra e outra vez que não o tire, o vestido azul, a musa do teu contentamento. Estarei certa quando digo que não te vi, uma única vez, a procurar, nas nossas palavras trocadas, a chave da minha casa? Estarei errada, certamente, quando te atribuo as culpas dos suspiros fugazes que, aqui e ali, com e sem vestido, vou largando enquanto te imagino, a ti e ao teu corpo, colados ao meu, separados os dois apenas por um fino tecido de Verão? Se nos masturbamos em uníssono, encontro argumentos para negá-lo, a pés juntos, sob juramento, que não. Se me excito com a hipótese da tua excitação, logo atribuo culpas à solidão, a esta necessidade de contemplação, completamente desnecessária, quando lá em baixo existe um talho, onde se corta carne fresca, ainda em sangue, exibindo traços demorados de matança, grunhidos sufocados pelas máquinas. E o meu coração, ateu, reza para que todo o sangue seja suficiente, chegue aonde tem que chegar, antes mesmo que o sol espreite por entre a neblina do rio. E as minhas veias, salientes, quentes. E tu, sobreviverás à efemeridade desta nossa fantasia? Se somos carne ou apenas espectros, se ao espelho nada vemos para além daquilo que fomos no passado, antes de nós, mesmo sabendo que não haverá nada durante, nem após. Apenas. Que cores queres que eu nos pinte na imaginação? Do azul, o vestido. Molhado. Suor. Excitação. Cinzentos, nós. Acordo agarrada aos lençóis, pedindo mais, pedindo perdão. Ocorre-me o medo, não a palavra, não a sensação, como se alguma vez alguém me condenasse a um celibato manchado de pecado e auto-flagelação. Como se fosse uma vertigem. E tu agarras-me, no meu pensamento, em pleno tormento, dizes-me para parar antes de começar. Calas-me e o teu olhar. Aquele que fixei, mesmo antes de saber que era para o recordar, agarrada ao que tenho e ao que não tenho, oscilando entre ordens: Vem! Vem-te! Não venhas! Não te venhas! Corando com o indecoro de toda a situação. Olhando para baixo, não por submissão, mas por preguiça. Procrastinei no prazer e na vida. Não em ti. Nunca te amei, nunca te idolatrei, sei exactamente o que me és, o que te sou. Um vestido de Verão. Somente uma moda a preço baixo, com nada por baixo.