segunda-feira, 28 de abril de 2008

Bonito não é.


Porque não consigo eu separar-me de um sinal de nascença?

Fugi

Fugi de ti como um violino foge de uma nota grave.
Como esta orquestra fingida que é o meu coração foge do sangue que lhe corre.
Como esta pausa de ansiedade que me dá na música que compus para nós.
Fugi e fingi.
Fingi que te era alheia nesta sórdida sensação de amar.
Fingi a valentia de um guerreiro de busto erguido.
Fugi mais depressa que a presa foge do seu predador.
Fugi para mais longe que o além sol.

Violinos ripando notas agudas e aflitas,
Repetidas num refrão que não percebi.
O amor era a parte esquerda do corpo morto na morgue.
A paixão era uma autópsia lenta e sanguinária.
E eu, o bisturi.

Tu… quem eu não sei ainda.
Que parte te pertence, que parte te sobra.
Que sensação terás ao desvendar esse corpo frio e inabitado.
Que instrumento tocarás para que tudo deixe de ficar igual.

Lágrimas de olhos mortos e vazios de azul.
Sangue escorrendo o pouco vermelho que sobeja em si.
A própria criação da arte na carne putrefacta do depois de amanhã.
A simulação de um orgasmo rígido em ritual solitário.
Os punhos cerrados, fortes e másculos, secos e frios.

Foi esta parte que eu ouvi lá fora alguém gritar
Em desatino de amante não convencido com a morte que nos assombra,
Não satisfeito com o beijo molhado da despedida.
Horrorizado com a ideia da sua cama continuar por estrear.

E os violinos, ardem de tanta nota repetida em desatino de compositor.
Será que eu pedi para repetirem este refrão até que a luz me venha à cabeça?
Será que a voz rouca que me segreda ao ouvido não farás ainda é a do meu pai?
Ou será que o bagaço deu para apagar na sua cabeça a dor de me perder?
Ou será que outro copo me faz alucinar com vozes que já não mais pertencem à razão?
E o que é certo e coerente afinal?

Fugi quando queria ficar mais um bocadinho.
Fingi quando queria dizer-te que te queria de todas as formas possíveis e imaginárias.
Cubos, círculos, triângulos, pentágonos…
Espirais de sentimentos e fervor.
Incerteza de até quando.
Incoerência na definição do tempo presente,
Na definição de depois.
E sem mas que modifique o significado e importância daquilo que ficou.

Portas abertas fazem a fronteira entre pessoas e hábitos
Nas ruas movediças, onde caio próximo do sinal stop
Cá fora, morrem cães esfomeados
Pedem mendigos famintos
E outros, que talvez não.

Levanto-me e reparo no letreiro novo do café
Precisam de empregado ou empregada ou lá o sexo que queira ter
Não me preocupo com a sexualidade do futuro explorado
Preocupo-me antes com a memória vaga daquela que nunca tive
Mas preocupo-me pouco e esqueço-me a meio de um bafo no cigarro que ainda agora acendi

Pergunto se os encontrões dão pontos na lavagem automática
Ou descontos de não sei quantos por cento na hamburgueria
Há pessoas que têm gozo em encontrar corpos desconhecidos nesta romagem comercial
Eu não. Prefiro largueza de tacto. Estou bem com a visão e o olfacto

A prostituta muda que aqui morava morreu
Não sabia que as mulheres da vida também morriam
Mas fui devidamente informada pelo papelinho na montra da funerária
E pela imobiliária que meteu a pequena casa à venda

Declaro morte à rotina. Minha e destes transeuntes todos.
Quero um apocalipse dantesco
Que marque com chamas e cinza as imagens satélite
Que decepe sem pudor
Que mutile por amor.
Um apocalipse que combata o sofrimento com ainda mais sofrimento
Tamanho sofrimento
Que não se consiga medir com medidas conhecidas em todos os universos

Declaro morte a tudo o que me rodeia
Sinto-me Cristo o salvador e castigador de todos os mortais
Sinto-me a justiceira que nenhuma série de televisão conseguiu alguma vez argumentar
Morte à estupidez que nasce todos os dias e prolifera sem pedir licença
Declaro prisão perpétua ao preconceito e ao cochicho antecedido de uma cotovelada.
Declaro silêncio absoluto e eterno a quem não sabe falar
E a todos os que usam a retórica a fingir inteligência.
Morte por lapidação a todos aqueles que ousam trair as amizades
Quartos almofadados para todos os outros que insistem em amar quem não os ama
Auto-combustão ao fato-treino domingueiro
Crianças a correr pelas ruas sozinhas sem apoio, nem carrinhos e bonecas
Todas a morrer sem perceber. E eu quero lá saber: Nem deviam ter nascido
E o senhor doutor, não morre? Claro que sim.
Crucificado num auto de fé bem ateado com despachos e formalidades cagalhonas
Vão-se todos foder. Quero lá saber. Já cá não fazem falta, se é que alguma vez fizeram.

Regresso a casa e procuro o meu chicote no guarda-fato. Sei que o vou encontrar

Os dias


Absortos são os dias em que vivo
É a luz que me fustiga
Por não ser mais nem menos que os outros todos
Por ser simplesmente igual e paradoxalmente inconformada.
Anestésica é a dor que me dá na alma e que se espalha velozmente por todo o resto que me pertence e me transcende.
Para que eu seja um pouco de anestesia também para além da dor que me dá gozo infligir.

Odeio a multiplicidade de espaços onde me deito,
A unicidade dos seres que tentam à força de amor me fecundar,
A diversidade de odores que me perfumam enquanto espreito e procuro
Um futuro melhor ou talvez o mesmo presente um pouco mais garrido.
Aplaudo os significados e os significantes de todas as insignificâncias
Que me fazem chorar, rir e talvez sonhar.

Sou tudo um pouco menos que todos os restos que deixo escrupulosamente no canto do prato.
Se amo, é porque toda a envolvente me diz que não há nada mais interessante para fazer.
Se não sou correspondida, mais uma razão tenho para beber um copo de vinho.

sábado, 19 de abril de 2008


De todos os erros,
Aqueles que não cometi soam-me melhor.
De todos os amantes,
Aqueles que não me quiseram pareceram os mais razoáveis.
De todos os abraços,
De todos os suspiros,
De todas as taquicardias
E anarquias,
As propagandeadas pelos outros levaram-me à devoção.

Detesto pessoas

Detesto pessoas.
Detesto as suas formas obtusas.
Detesto as suas roupas. As suas vestimentas.
Os seus acordes monofónicos e inconfundíveis.

Detesto pessoas e as razões pelas quais elas se reproduzem.
Detesto as suas criancinhas de colo e mais os seus carrinhos de bebé a deslizar pelos passeios em contra-mão.

Detesto as suas conversas da treta e mais os seus altos níveis de moral.
Detesto a sua vivacidade ao falar de temáticas nado-mortas.
E mais a sua forma opinante e circunstancial.

Detesto os seus automóveis.
Detesto as suas casas de emigrantes.
E mais os seus empréstimos colossais para comprar aquilo que nunca poderão ter.
Em plenitude. Em longitude e na diagonal.

Detesto os seus pontos de encontro.
As suas festas e os seus arraiais.
Detesto os seus meses de Agosto e os seus natais.
Detesto os seus reencontros saudoso-fingidos e mais os seus rituais.

Detesto pessoas no geral e no particular.
Particularmente quando me apalpo e me avisto ao espelho
E me confronto com a possibilidade de também eu ser pessoa.

As inadvertidas advertências de nada serviram




Acordar na aldeia...



O despertador do telemóvel acaba de tocar pela quinta vez hoje. Enleio-me nas mantas e no cão. Rais parta o cão por insistir em dormir comigo. Mas quem mais ousaria fazê-lo? Consigo finalmente vencer a batalha matinal e rotineira do despertador, das mantas e do cão, e levanto-me. Algures no pouco espaço que separa a cama da aparelhagem encontro aquele disco que há muito não via por estas bandas. Meto a tocar. Industrial para toda a família às nove da manhã parece-me bem. Festa gótica imaginária, para que tenha a sensação de tantos sábados perdidos em Lisboa.
Há quem faça uma torrada e beba vinte decilitros de leite pela manhã. Eu faço um cigarro e procuro, nas inúmeras saquetas de chá, alguma que me saiba a qualquer coisa menos ao vinho de tinto de ontem à noite. Menos ao hálito que ainda hoje carrego. Menos ao hálito de alguma boca que me tenha beijado nas últimas horas. Algo não correu bem, recordo-o agora. Mas deixemos os detalhes para quando o estômago esteja minimamente capaz e a cabeça menos atordoada.
Abro a porta do quintal para que o cão possa fazer as suas necessidades. Faço um chá de qualquer coisa e caramelo e sento-me à mesa, dando-me a ilusão de pessoa normal. O vizinho de trás trata da capoeira e mais dos seus cães. E engasga-se. E escarra. Pelo menos umas quatro vezes seguidas, para não falar das outras entremeadas com uns grunhidos dirigidos à sua santa família. Hum, bom apetite para ti também.