quarta-feira, 28 de junho de 2017

Molas

O que é que tu fazes com o teu tempo, que não te sobra, que não te vê? Contas molas. Molas para prender a roupa lá fora. Questão primordial: ter molas. Motivo: ter roupa. Lençóis e toalhas de banho. Cuecas e camisolas de algodão. Contabilizadas para sobreviverem até à próxima crise, até depois dessa crise. Molas que te prendem a roupa. Respiras e olhas para o estendal. Tudo permanece cândido, meneado pelo vento. Hoje está vento, sabes? Levantas-te. A tripa que te anda às voltas, a cabeça que não pára sequer para pensar. E da máquina, eu sei que sabes, ouves-lhe o centrifugar final. E pensas: mais roupa, não sei se tenho tantas molas. Casa-de-banho. Sentas-te na sanita, fazes o que tens a fazer e o papel higiénico – pensas – está quase a terminar. Preocupas-te com a roupa e o vento e dás uma corrida até à varanda, para ver se está tudo bem. E bocejas e arquitectas um plano que seja favorável a uma  sesta. Mas a máquina já parou e tens de te livrar depressa da roupa, porque nada na tua vida é mais importante que estender, secar, apanhar, arrumar a roupa. A roupa que não te faz falta, a roupa que podias muito bem acumular mais um bocadinho no cesto. Mas o cesto. O cesto quer-se sempre vazio, porque sabes que depressa o vais encher de novo. De tretas. De desculpas. De mais roupa. E o que é feito das molas?

terça-feira, 12 de abril de 2016

Procrastinação

Tinha que começar. Um dia teria que ter algo para mostrar a alguém. Um texto. Um emaranhado de palavras, frases floreadas com adjectivações fortes. Um enredo. Algo que não fosse bem eu, mas alguém que eu conheça de perto, apesar da sua inexistência. Tinha ou teria que começar, mesmo que embarcando na terrível sensação de ter sempre qualquer coisa para fazer, qualquer coisa insignificante, como responder a um e-mail que se deixou pendurado durante dez meses, a dizer ‘desculpa, já não te deves lembrar de mim, mas aqui estou eu agora, totalmente disponível para trocar missivas contigo’ – a roçar o tédio e a vulgaridade. Aqui estou eu, a dizer que tinha ou teria que fazer algo que me corre nas veias e não é sangue, mas que me ocorre pensar como o propósito de aqui estar, sentada e dividida, entre coisas comezinhas como a lareira do vizinho, que me cheira tremendamente bem a Outono em casa dos meus pais, antes ou depois da escola, de galochas ou de pantufas, quentinha ou, coisas outras, como são as tarefas domésticas que estão sempre todas por fazer, especialmente na minha cabeça.

Tinha que começar, ou teria. A coisa perfeita que sei ser capaz, sem nunca a ter tentado antes. Mas a televisão, ora sem som, ora aos altos berros, passa mesmo aquela reportagem que eu nunca, em momento algum, gostaria de ver, mas agora, somente agora, faz-me todo o sentido, rebenta-me os sentidos. Ao ponto de chorar. A fome, a miséria dos outros, as crianças negligenciadas, os animais maltratados, os idosos abandonados. A carne a caminho do matadouro. Mas também, e sobretudo, a importância da Primavera e as suas pequenas flores e alergias – os espirros, meus companheiros – e o papel disto tudo, mais o papel que tenho, teria e tinha mesmo que ir buscar, para me assoar, enquanto escrevo infinitamente comentários em redes sociais, considerações patéticas sobre pequenos excertos cómicos ou simples vídeos que publiquei não apenas uma ou duas ou – ainda assim – três vezes, mas quinhentas vezes. Músicas que repito, sem fim, sem motivo concreto. E lá me detenho, nas letras, num ou noutro detalhe, dramático ou hilariante.

Levanto-me. Lembrei-me ou deveria ter-me lembrado – ou será que já me tinha lembrado antes? – que ainda não lavei os dentes depois do jantar. E do jantar, em plena digestão, ocorre-me – ou nunca parou de me ocorrer – que ficaram ali no lava-loiça um copo, um prato, um garfo, talvez uma tigela, por lavar. Que se não me despacho, amanhã mais um copo, outro prato, outro garfo, duas facas, uma chávena, se irão juntar à festa e, lá bem para o final da semana, talvez daqui a quatro dias, irei morrer soterrada em loiça suja, moscas e formigas por cima, as autoridades sanitárias à porta do prédio.


Mas havia sempre qualquer coisa para fazer, antes das outras que eu terei que fazer, ou tinha. Não sei se me lembro. Acho que era uma ideia, aquela que me perseguia e me enchia a cabeça e me fazia pensar que me teria que sentar, aqui na sala ou onde tivesse que ser. Que teria que me focar e ganhar coragem para me concentrar, perseguir o objectivo, agarrá-lo e amarrá-lo. Prendê-lo e só o deixar fugir, depois de cumprido, porque sabia, ou saberia – e sei-o tão bem – que depois disso, não haverá mais nada que se manifeste, por se impor e se acometer assim, desesperadamente entre mim e a minha escrita, estará uma casa limpa.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Um pobre,
Encharcado de castanho,
Percorre as suas pobrezas,
Pelo vazio dos seus bolsos,
Pelo roto das suas meias,
Até chegar à meta,
A sarjeta.

(Ter vida,
É um luxo supremo,
Tal como o cigarro quente,
Aos lábios,
Rente.)

quinta-feira, 24 de março de 2016

É este o filme.


É este o filme: uma actriz decadente, deixa morrer um cigarro nos lábios esborratados de vermelho. Em lingerie, move-se como um tigre enclausurado no sofá. Leu algures numa revista que era bipolar. Frequenta as sensações do diagnóstico. Faz escala nos diversos corações que visitou. Há nela a vontade de voltar ao útero da sua mãe e reaprender os gestos humanos mergulhada em liquido amniótico. Há nela o sentido prático de espalhar cinzeiros pela casa, de levar o lixo para baixo antes do saco se tornar demasiado pesado. Há nela o sentido literário de deixar revistas em cima do bidé, com astros que não mentem, com psicólogos cronistas que não se enganam. Há sempre papel higiénico que se acaba. É este o mote para se seguir em frente e caminhar directamente para a cama, onde se movem os lençóis com o peso dos gatos e os retratos de homens, muitos homens, muito inteligentes, lindos, apaixonados, cegos, desmembrados, mortos.
Há a sede da pré-ressaca, o medo de estômago ferido, o critério pouco rebuscado de se procurar lenha para se queimar. Há nela uma vontade de apressar a morte, fechar os olhos e perceber que já está, que nada mais a irá surpreender ou desagradar. Mas alguém bate à porta e, quando alguém bate à porta, tem que se atender.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Janela

Acabada de acordar, acendo. Um cigarro, também. Folgo em ver, do outro lado da suja janela, as árvores a tremer, os gatos a gemer, as pessoas a esfregar as mãos enquanto correm para o trabalho, neste frio de Janeiro. Se Deus existisse – e eu sei que não existe - chamar-se-ia Pássaro e cantaria ali, perto dos melros que avisto. Se Deus existisse, a criança traquina que não ouve a mãe e corre para a estrada, seria atropelada, mas não morreria, apenas aprenderia a lição.
Neste traje de observador descredibilizado, abandono a janela por breves instantes e recolho-me mais um pouco na cama, para pensar. Se és tu quem ainda dorme, ali enroscado, ao meu lado, já pouco me importa. O meu corpo, prisioneiro de memórias distantes, há muito que não sabe o que é estar vivo. Se não me enterro, é porque não tenho dinheiro para o funeral.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O Tempo

Estava habituada ao tempo de Lisboa, era por esse que me regia. Esse tempo apressado, sempre a escassear, pelas ruas estreitas do meu velho bairro. Quando o meu pai me levava ao comboio, naquela outra terra que já tinha sido minha, eu desesperava com a calma do tráfego e dos transeuntes e mal podia acreditar quando quinze minutos permitiam, sem nervos nem pressas, beber descontraidamente um café ao pé da estação.
Brincava então com pacotes de açúcar cheios, prontos a serem depositados na minha mala de mão. E pensava: que raio de tempo é este, que escorre-nos pelos dedos tal como mel? Peganhento, tempo que não nos larga, lento até chegar ao chão. E, no entanto, foi aqui e não noutra terra de tempos mecânicos que vi toda a gente envelhecer apressadamente, apesar do seu andar em câmara lenta. Foi aqui que presenciei a morte, em passos apressados, a caminho do cemitério. Foi aqui que doenças e acidentes ceifaram mais vidas do que todas as vidas que conheço na capital.
Erradamente, dizem-nos que o tempo somos nós que o fazemos. Não, o tempo vive agarrado aos sítios e às pessoas, correndo para nos dar a ilusão que muito de si já passou, estagnando para nos pregar a partida sádica de que afinal, mesmo parado, consegue deixar-nos rugas e cicatrizes.
Sou do tempo em que o tempo se queria acelerado, para que as aulas acabassem depressa, para que as férias chegassem, para que os aniversários nos trouxessem os dezoito anos e mais as idas para a universidade e a promessa de que tudo correria de feição, a nós seres pré-emancipados.
Olhando para trás, vejo um tempo turvo, ressabiado, estragado pela idade e por estes impulsos de o pôr sempre em marcha. Tempo velho e sujo, que me faz manguitos e me amaldiçoa em vésperas de aniversários, casamentos e funerais. Que mete criancinhas crescidas nos colos dos amigos, para fins paternais ou outros mais obscuros, que tinge o cabelo de branco a pessoas que sabíamos serem para sempre jovens, que nos dá dores nas costas e contas para pagar.
Tempo que me faz correr, rumo à capital, de volta às ruas estreitas do meu velho bairro, quando nada me faz entender a pressa que tenho para apanhar um comboio que se sabe sempre atrasado.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Quando o coração batia forte,
As grades apertavam-no e ele deixava de respirar.
E nesse momento claustrofóbico,
Lembrava o dia em que esvaziei os bolsos,
Desapertei o cinto,
Baixei as calças,
E defequei na tua vaidade.

Dias de luto se seguiram,
Em que a luta constante contra aquilo –
Aquilo que prende o coração,
E o outro aquilo –
Aquilo que o denunciou e o empurrou para o cárcere,
Se revelou inglória,
Porque aquilo que o prendia e aquilo que o denunciara e o empurrara,
Tinham despertado
Para aquela paixão que une os seres,
Quando estes protestam contra um só mal.
E desde então,
Andam por aí,
De mãos dadas,
Olhares cúmplices,
Trocando carícias provocatórias.

Como se eu já tivesse acabado de defecar,
Como se as grades se tivessem quebrado
E andasse por aí
Um coração a saltitar.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Vestido Azul

Visto secretamente o vestido azul, aquele com que me imaginas a abrir-te a porta, a mostrar-te as divisões da casa, a convidar-te para um striptease lento, rebuscado, numa manhã de cheiros invernosos. Caí na armadilha de te incitar à violência doméstica, de mordaça na boca, ajoelhado, a contemplar-me, a pedir-me outra e outra vez que não o tire, o vestido azul, a musa do teu contentamento. Estarei certa quando digo que não te vi, uma única vez, a procurar, nas nossas palavras trocadas, a chave da minha casa? Estarei errada, certamente, quando te atribuo as culpas dos suspiros fugazes que, aqui e ali, com e sem vestido, vou largando enquanto te imagino, a ti e ao teu corpo, colados ao meu, separados os dois apenas por um fino tecido de Verão? Se nos masturbamos em uníssono, encontro argumentos para negá-lo, a pés juntos, sob juramento, que não. Se me excito com a hipótese da tua excitação, logo atribuo culpas à solidão, a esta necessidade de contemplação, completamente desnecessária, quando lá em baixo existe um talho, onde se corta carne fresca, ainda em sangue, exibindo traços demorados de matança, grunhidos sufocados pelas máquinas. E o meu coração, ateu, reza para que todo o sangue seja suficiente, chegue aonde tem que chegar, antes mesmo que o sol espreite por entre a neblina do rio. E as minhas veias, salientes, quentes. E tu, sobreviverás à efemeridade desta nossa fantasia? Se somos carne ou apenas espectros, se ao espelho nada vemos para além daquilo que fomos no passado, antes de nós, mesmo sabendo que não haverá nada durante, nem após. Apenas. Que cores queres que eu nos pinte na imaginação? Do azul, o vestido. Molhado. Suor. Excitação. Cinzentos, nós. Acordo agarrada aos lençóis, pedindo mais, pedindo perdão. Ocorre-me o medo, não a palavra, não a sensação, como se alguma vez alguém me condenasse a um celibato manchado de pecado e auto-flagelação. Como se fosse uma vertigem. E tu agarras-me, no meu pensamento, em pleno tormento, dizes-me para parar antes de começar. Calas-me e o teu olhar. Aquele que fixei, mesmo antes de saber que era para o recordar, agarrada ao que tenho e ao que não tenho, oscilando entre ordens: Vem! Vem-te! Não venhas! Não te venhas! Corando com o indecoro de toda a situação. Olhando para baixo, não por submissão, mas por preguiça. Procrastinei no prazer e na vida. Não em ti. Nunca te amei, nunca te idolatrei, sei exactamente o que me és, o que te sou. Um vestido de Verão. Somente uma moda a preço baixo, com nada por baixo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Ressaca

Uma leve saudade do beijo que não se deu e música alta a tocar. Pareces curada daquela que parecia ser uma ressaca, daquele que parecia ser um amor. É mais fácil desculparmo-nos com o excesso de álcool do que com a carência em excesso. É mais fácil acordarmos sozinhos sentindo uma dor-de-cabeça do que acompanhados fingindo agrado. Os bons dias e as boas noites continuarão guardados na gaveta das despedidas e dos amores que podiam ter sido. A integridade que velas todos os dias, continuará fechada nesse caixão que por vezes se balança em danças de ritmo cardíaco. Querer defendê-la de situações hipotéticas é-te mais presente do que a própria noção de integridade. A inquietação, que te assola à noite, quando te vês confrontada pelo desejo, não passa da faixa 8 do disco que ouves. O revólver, escondido debaixo da almofada e com o qual anseias jogar à roleta russa, continuará à espera do seu momento, enquanto te espreguiças e danças, de janela aberta e sem medo de ser vista nua.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Retrato (uma prosa transformada poema para o Dia da Poesia)

Um retrato pendurado na parede.
Uma senhora antiga, muito bem vestida, olhando o infinito em tons sépia.
No chão, deitado sobre um colchão velho, mira o retrato da parede,
Pedindo clemência.

Pelo chão, fotografias suas, desbotadas, de outros tempos.
Aqueles em que fora feliz.

Não há nada a perder neste tempo em que vive.
O quarto, emprestado, é o último tecto que lhe resta.
A manhã, que lhe entra pela janela, a última memória que o assombra.
O relógio, sempre atrasado, é o último tempo que conhece.

Nada mais sobra, dele e do tempo que passa.

Nas suas mãos encardidas, as memórias vão-lhe surgindo, através de velhas fotografias dela.
Houve um tempo, passado, que o fizera sorrir.
Houve um tempo, esquecido, que fora o único tempo em que quisera estar presente.
Tudo o resto era ele, um resto, uma sombra.
Um desespero.

Tinha sido um homem.

Tinha amado como ninguém aquela que desbotada lhe sorria,
Fotografia após fotografia, pelas mãos gastas.
Era ela quem ainda lhe trazia luz,
Para além da manhã que lhe entrava pela janela.
Era ela quem ainda lhe acendia os cigarros,
Que ele fumava, um atrás do outro,
Naquele espaço tão complicado em que se tornara a sua própria vida.

Não entendia os anos que tinham passado.
Não os sabia contabilizar.
Não os conseguia medir, nem mesmo olhando para o relógio,
Nem tão pouco através das rugas que lhe moldavam o rosto.

As suas mãos, pesadas,
Escrutinavam todos os retratos.
O de uma senhora antiga que não conhecia, os dela que lhe passeavam pelos dedos e lhe davam voltas ao coração.
A miséria, não era aquele quarto, não era aquele colchão.
Era ele.


(texto original de 12/2010)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Bloqueio


Eu sei que devia publicar qualquer coisa, só para dizer que estou viva, só para manter vivo o blogue. Sim, estou viva, tenho saúde, mas falta-me inspiração. Sim, o blogue está vivo, continua a ser visitado, por mim e por meia dúzia de pessoas, mas carece atenção. Minha, claro está.
Ando chateada.
Primeiro, os acordos ortográficos que deambulam por aí, infiltrados em todo o lado, até nos correctores automáticos, selvaticamente retirando-nos letras e acentos onde sempre os pusemos, sem pedirem licença, nem desculpas. Mal educados, os gajos. 
Depois, chateia-me esta minha falta de habilidade para a escrita, cada vez mais visível, cada vez mais difícil de esconder, que me torna num ser inseguro se por acaso não tenho por perto um corrector ou um dicionário online, que me leva a escrever erros hediondos, quando eu penso que estou a escrever a mais nobre obra literária, que me faz temer que apareça a professora de português do quinto ano e me diga: nunca mais te dou um cinco na vida!
Devia escrever, eu sei. Assiduamente, obviamente. É a única coisa que eu devia fazer na realidade, todos os dias, quando tenho uma folha ou um teclado entre mãos. Devia escrever, em vez de falar, em vez de deambular por aí, em vez de me envolver em conversas de cabeleireira ou insistir em estados letárgicos entre a cama e o sofá, as contas para pagar e a lida da casa.
Mas maldito bloqueio, que não sei donde vem, para onde vai, porque insiste em bloquear-me a pequena veia - que até há bem pouco tempo - ainda bombeava qualquer coisa. Essa veia fininha, invisível e frágil, que se chama Veia Literária. Maldito bloqueio que me afecta as mãos e os pensamentos e que não me deixa terminar nenhum texto, não me deixa concretizar uma ideia que seja, que me afasta de tudo quanto é ferramenta de escrita ou fonte de inspiração.
Maldito bloqueio, tenho uma mensagem para ti: vai à merda e deixa-me escrever!

terça-feira, 9 de julho de 2013

Preciso do certo e do errado
Para tomar balanço e saltar.
Isto de se tomar consciência do que se é,
Um ser indubitavelmente errático,
Com pernas, com pés,
Com cara de parvo,
Não é fácil.

É piscar os olhos e perceber que lá dentro há qualquer coisa,
Que vai e vem.
Que o cérebro  se apaga, à mínima martelada,
Mas que é preciso martelar-se muito na vida
Se se quer ser alguém.

Preciso do certo em certa medida,
Do errado, em certa outra.
Não estou bem em lado nenhum,
Mas também já percebi que isso a poucos importa.

O que importa é se há pompa e circunstância,
Nas anormalidades que pratico.
Se no dia do juízo final
Existe alguém que perca a cabeça
E o juízo.

Se as flores estão baratas e se há jazigo
O canto certo, nas medidas certas
Para todos em coro aplaudirem e dizerem:
- Ah, assim está bem!
Que isto de se enterrar quem cá não faz falta,
Dá um trabalho do caraças, mas compensa.

Oh se compensa!
A florista, o cangalheiro,
Todos ganham, mas ninguém esfrega as mãos de contente
Não à frente de toda a gente,
Só lá em casa à hora do jantar.

Não sei afinal,
Se preciso de ter conhecimento e proporções ideais
De certo e de errado,
De tomada de consciência da inconsistência que tudo isto é.
Talvez devesse apenas,
Encorajar alguns a irem ao meu funeral,
Suborná-los com bebidas,
Mostrar-lhes o corpo,
Escrever-lhes versos
E ser patética, como sempre,
A fingir que sou gente,
Sem grandes filosofias
E deixando de parte a sinceridade
E a vontade de pagar
As pequenas dívidas

Que não parei de acumular.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Amanhã


O carteiro vai tocar a todas as campainhas. Vais acordar feliz. É hoje. Não, não é. Meia-dúzia de jornais deixados dentro da meia-dúzia de caixas de correio existentes. As últimas promoções do supermercado, já as sabes de cor. É lê-las e relê-las enquanto te deixas estar sentada na sanita. Muita carne e nada que te apeteça. O vizinho dir-te-á bom dia, apesar de saberes que ele não quer nada contigo. Ainda há dias se queixava por teres feito barulho ao chegar, algures num sábado de madrugada. Tenho ideia que eram cinco da manhã, hora local. Os pássaros já cantavam, nas árvores. A tua casa, um império de cinza perdida, por cinzeiros, pratos, copos, chão. A higiene há muito que não te visita. Nem o teu pai, pensarás tu. Permaneces quieta, na cama, com a ideia fixa de que amanhã haverá correio para ti. Uma carta manuscrita, um endereço legível, um beijo de despedida. Um encontro marcado e tu ousarias tomar banho, maquilhar-te. Eventualmente usar aquele perfume que continua literalmente na prateleira, selado (a tua madrinha que não o sonhe). O carteiro tocará todas as campainhas com o mesmo desdém que se levanta todas as manhãs. O mecanismo fisiológico dele é muito parecido com o teu, só que ele tem – ainda! – um trabalho. Desdenharás, mal abras a caixa do correio, todos os seres que te ignoram e que negligentemente te fazem infeliz. Correrás escada acima com o jornal na mão, acompanhado por três ou quatro folhetos destinados a potenciais turistas seniores. Estás na idade em que não és a carne que tanto repudias, nem o peixe que tanto evitas. És um nem-uma-coisa-nem-outra. Adorarias ser uma alface, fresca e viçosa, comodamente arrumada na gaveta do frigorífico. Mas não fazes por isso. Vestirás outra vez o pijama. Terás a certeza que não te apetece comer nada daquilo que vem promovido no jornal, nem tão pouco o presunto que vem de oferta com uma viagem a Badajoz. Saber-te-ás sozinha, neste espaço que habitas, mas também em todos os outros que possas vir a habitar. Pode ser que morras acompanhada, numa desgraça qualquer, por meia-dúzia de pessoas tuas desconhecidas. Nunca se sabe. Corre as cortinas, pelas minhas contas já passará do meio-dia. Mete-te debaixo das mantas. Falta pouco para anoitecer, basta sonhar. Basta crer que amanhã será outro dia.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Primeira dor

Dói-me o peito, do lado esquerdo.
É uma dor, é um desespero.
É um enredo de fumos e maus-tratos,
Um simbólico coração partido e os seus cacos.


sábado, 15 de dezembro de 2012

Nove da Manhã

Segunda-feira, nove da manhã. Toda a gente sabe que nesse dia, a essa hora, ela bate a porta do prédio com força e segue rua abaixo, de salto alto vermelho escuro, mala a condizer, pouco baton e um risco castanho-dourado, nos olhos, assimétrico e mal conseguido.
A pequena mala balança com o andar saltitão proporcionado pela pressa, pelos saltos e pela calçada maltratada das ruas de Lisboa.
Segunda-feira, nove e dez da manhã. Primeira paragem: a pastelaria do bairro. O rapaz ao balcão sabe, que nesse dia e a essa hora, ela entra cheirosa estaminé adentro. A máquina sabe que o café sairá directamente de uma das suas bicas para dentro de uma chávena escaldada. O pacote de leite adivinha a minúscula gota que deitará só para dar um ar de sua graça. Ao balcão, aos lábios, a ela.
Duas moedas de vinte, uma de dez e uma de cinco para pagar conta certa, enquanto amarrota um guardanapo de papel a dizer bem-vindo na mão gorda povoada de apertados anéis.
Segunda-feira, nove e um quarto. Sai apressada da pastelaria, entre bons dias e acenos, rumo à paragem do autocarro. O tempo está todo pensado, minuciosamente pensado, para que não se atrase, para que nada a atrase, nem tão pouco o semáforo, nem o mendigo alcoolizado, nem o piropo vindo da porta do talho. Paragem após paragem, sente o fraquejar das pernas e da maquilhagem. Sente o palpitar do coração, esse ser independente que habita dentro de si.
Segunda-feira, nove e cinquenta e seis. O vento sabe que se soprar mais forte corre o risco de a despentear. O tempo sabe que se correr mais lento é provável que ela não saiba abrandar. A hora de visita é às dez. São quatro minutos de espera, numa sala vazia. O frenesim da manhã hospitalar não a abala. Uma sirene ou outra que se faz ouvir, não a incomoda. Uma enfermeira simpática, em sua direcção, quase lhe escapa aos sentidos. “Venha por aqui”.
Segunda-feira, dez e um da manhã. Entra no quarto que parece uma camarata, oriunda de um filme de guerra. Atravessa os destroços humanos, os suspiros humanos, os restos humanos. Tudo faz para que o seu perfume não se faça sentir, tudo faz para que nada a faça sentir. Abordada pelo médico, esconde o pânico depois de ouvir “Não sabemos se sobreviverá”. Ainda há minutos tão digna, respira fundo e avança. Ele está cá. Ele ainda está cá. Ninguém lhe fechou os olhos, não há nenhuma máquina que apite ao ritmo do seu coração. “Esperei por ti” diz-lhe uma voz vinda das profundezas daquele pré-cadáver. “Eu sei que sim”. Aperta-lhe a mão com essa mão gorda, com toda a força que lhe sobra e mais alguma que não sabe de onde vem. Ele diz-lhe adeus, não até amanhã, não até para a semana. Não até logo. É o último suspiro e o final de uma vida em comum. Foram felizes amantes e o baton sabe que sim. Foram incógnitos amantes e a esposa dele soube que sim.
Segunda-feira, meio-dia e vinte. Regressada a casa, descansa nas lágrimas da solidão. Esborrata o risco castanho-dourado, abandona os sapatos a um canto, para não mais os calçar. Desliga o telefone, baixa a persiana, engole dois ou três comprimidos quaisquer e abandona-se na cama.
Nunca mais haverá segunda-feira às nove da manhã.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A normalidade que me resta

Vamos despedirmo-nos disto tudo, sem olhar para trás um segundo. Escrevi-te eu, em jeito de despedida, na última noite que passaste comigo. Nunca mais voltaste. Deus é grande e no entanto, por muito que olhe, não o vejo. Nem para um último aDeus. Estou confusa e trago dentro de mim um estômago às voltas com a carne que comi acompanhada pela imagem sórdida de um sonho de ontem, meia-noite e picos, luz acesa na mesa-de-cabeceira até de manhã. Não há ternura que me me agarre mais ao leito de um sem-abrigo, do que o próprio agarrado à tigela da sopa fumegante. Dizem que o cartão não deixa passar o frio. Dizem que não há isolamento melhor. Deitei-me ali um bocado, mas pelo sim pelo não, optei por regressar a casa.
Não há tempo mais contado, do que aquela hora parada, braços cruzados, à espera de algo, no sofá.
Todas as manhãs. Todos os dias. A televisão aos berros, com gente aos berros lá dentro. E cá fora, cá estou eu, encolhendo-me, culpando-me, marcando números de telefone de valor certo mais IVA, para falar com o sorridente apresentador e ganhar um prémio. Sorte macaca de quem não tem saldo. Nem um telefonema consigo efectuar. O seu saldo não lhe permite efectuar a chamada pretendida. Vai morrer longe, tu e as tuas lérias, gravação inútil.
Há qualquer coisa verdadeiramente supérflua na minha rua. Não sei se é o cheiro a esgoto, se é a ratazana que esgravata nos sacos do lixo, se é o homem com três quistos sebáceos no alto da cabeça. Às vezes convenço-me que sou apenas eu, que estou a mais, com os meus rituais delinquentes, de ir meter as garrafas no vidrão, lavar os dentes e apanhar os dejectos do cão. Estou convencida que a normalidade não é mais aquilo que eu aprendi ao longo de trinta e tal anos de vida. Muito provavelmente é o inverso. E tudo o que aprendi, bem que pode ir parar ao lixo, ou ser atirado pela janela, para cair em cima dos turistas. Esses vândalos de máquinas fotográficas ao peito.
Temo pela sanidade do meu país, temo pela sanidade dos meus concidadãos. Também temo um pouco pela saúde débil daquele gajo que não conheço, que arrastava a botija de oxigénio no hospital no outro dia. Parecia coisa séria, mas lá por isso não devia andar para ali despenteado e a tossir em cima das pessoas. Já deve ter morrido. Ainda bem que estes casos estão controlados dentro dos hospitais.
À noite, junto à janela, fumo um cigarro e tento controlar-me. No meu sonho, tinha filhos e netos que me sentavam à mesa com uma camisa de forças vestida, para que não lhes fizesse mal. Fiquei assustada e tudo começou a fazer um estranho sentido para mim. Lá em baixo, os carros passam ligeiros, de médios acesos. O céu limpo, mostra-me que ainda há uma ou outra estrela que brilha, por cima da cidade, se a lua é nova. Fiquei louca ao pensar que tu e os outros me considerassem louca. Embalei-me num estranho pensar, delirei o que pude e o que já não podia.
Nada nos protege do frio, nada é supérfluo, toda a insanidade é relativa, como a demência, a deliquência, a debilidade. Mas tu foste e nem te deste ao trabalho de o tentar perceber.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Línguas

Encenamos um beijo de despedida – acho que já escrevi isto. Ou li. Ou ouvi. Ou até mesmo cantei. Línguas que se cruzam, ligeiras, molhadas, à procura de outras línguas faladas. A vizinha espia-nos. Sabe tanto de nós que nos penetra os pecados com essa precisão de macho certeiro em tempos de cobrição.
Ninguém sabe o tempo que demoro a encontrar-te quando fecho os olhos e me entrego amante aos olhares da vizinha. Tinha ideia que o tempo contigo passava depressa e que a sorte era algo que trazíamos no bolso para qualquer ocasião. Para qualquer eventualidade sorrateira, que é ter-te debaixo do alpendre a protegermo-nos da chuva em pleno dia de Verão.
Trago na algibeira, do casaco desabotoado, dobrado, agarrado à mão, meia-dúzia de coisas fúteis que gostaria de fazer antes de morrer. Enumero-as uma a uma, por ordem alfabética, por ordem patética. Seria tão estúpido morrer sem fazer nenhuma.
Trazes no rosto cansado, uma imagem vaga de infância, daquelas que têm cheiros e cores e entes queridos que nunca mais viste. Talvez flores, imersas no colorido de uma primavera de bibe abotoado e mão enrugada segurando a tua mão. Nunca te perguntei o que é que essa imagem fazia, retida no teu olhar, quando sei que ela não te pertence, a ninguém pertence, se não a mim.
Digo-te adeus na única língua que sei falar, um adeus imperfeito num tempo condicional. O sino da Igreja dá-nos as horas que não sabíamos, olhamos para os relógios e conferimos que o tempo passou e que outro tempo há-de vir. Foco-me nas lembranças que se querem longínquas do que acabou por acontecer. Se hoje foi presente, amanhã será passado e no futuro lembrarei com todo o prazer.
Colecciono conjugações de actos, como quem colecciona retratos ou postais. Piso as migalhas de pão que a vizinha atira aos pombos. Ruidosa, fecho a porta. Transpiro por fora, estremeço por dentro. Há alguém que saiba o que foi feito de mim? Não tu certamente, que te foste. Evoco os meus amigos imaginários, sento-os à mesa, ofereço-lhes chá e apresento-lhes o meu caso. Debatemos à porta fechada o que foi feito daquela menina que ainda ontem brincava às barbies, sem saber uma palavra em estrangeiro. Ninguém sabe ao certo, ninguém mais a viu. Dizem-me, que da última vez que a viram, corria feliz.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

É como se tivesse sido condenada ao tédio.

Oito horas passam-se, neste escritório, e nada acontece. Estou num estado de dormência tal que poucas capacidades motoras ou intelectuais me permitem mais do que ir aquecer a água à hora estipulada para o chá ou fazer uma salada à hora estipulada para o almoço.
As pessoas quando não têm quaisquer entretenhas, tornam-se apáticas, criam rotinas, desenvolvem paranóias e deixam de ser dinâmicas. Digo-o por experiência própria. Quem não se lembra – dos magníficos três ou quatros leitores assíduos deste blogue – dos tempos em que estive desempregada? Por duas vezes: uma quando me despedi do meu trabalho e decidi mudar-me para Lisboa e outra quando – assunto menos falado por estes lados – fechei a loja que tinha no Bairro Alto (projecto que durou aproximadamente um ano).
Da primeira vez, fiquei cerca de um ano, a bater com a cabeça em todas as paredes do pequeno T2 onde vivia, em Queluz. Da segunda, para além da cabeça, também impulsionei todo o restante corpo para as paredes, desta vez do pequeno T2 de Alfama. Para além do drama que é o desemprego, outro flagelo maior me preenchia os dias: tinham-se acabado as economias e carregava agora – e até meados de 2015 – um empréstimo bancário.
Quando regressei ao mercado de trabalho, depois de seis meses de auto-punição, lágrimas e questões existenciais, de uma forma muito naife, achei que tudo ia melhorar: a minha situação económica, a minha vida social, a minha vida afectiva, a minha veia literária. Tudo. Mas nada melhorou. Conheci dos piores lugares para se trabalhar neste e noutro universo e percebi porque tinha sido seleccionada: no desespero de algo arranjar, disse que sim a tudo o que a entrevistadora me apresentou como condições.
Trabalhei numa recepção de um Spa, envergando uma farda de gosto duvidoso, um rosto estupidamente maquilhado, horários que me obrigavam a acordar às 5h30 da manhã, uma única folga à terça-feira, o direito a um domingo livre de 15 em 15 dias e um ordenado mínimo para brincar à cadeira de gestão financeira.
Quando queremos promover a excelência dos nossos serviços, nunca devemos descurar o bem estar dos nossos funcionários. Funcionários tristes, mal-pagos e maltratados, nunca desempenharão funções com motivação e orgulho na empresa que representam e, na primeira oportunidade, tudo farão para arranjar um novo emprego ou, pelo menos, um atestado médico. Pensava eu que isto era senso comum.
Por portas e travessas, bem no final do meu contrato de seis meses, já outro emprego me esperava, aqui no escritório donde hoje escrevo. Escrevi a dita carta registada, pedindo a não renovação do contrato de trabalho, gozei 15 dias de férias e recomecei, noutro ambiente, noutros horários, noutra Avenida desta mesma Lisboa.
E é aqui que percebo que tudo o que passei, desempregada ou em regime de escravatura, não quero voltar a repetir. Não quero ter meses a fio, em que os dias não se distinguem uns dos outros, só se há chuva ou sol ou alguém aparece para me visitar. Não quero voltar a chorar, todas as manhãs, às 6 da manhã, porque vou para um sítio que anula todos os sonhos que tive, que me recorda todos os outros que não consegui realizar, que me anula enquanto ser humano e pensante e sonhador que sou.
Cresci formatada para estudar, para ter um curso e ser alguém. Alguém se esqueceu de supervisionar as áreas que estudei. Alguém se esqueceu de me dizer que não era humanidades no ensino secundário, nem tão pouco turismo no ensino superior, aquilo que devia seguir.
Alguém me devia ter dito para ler mais, em vez de andar a gostar das pessoas erradas e a ocupar o meu tempo livre a beber amêndoas amargas. Alguém me devia ter dito que se eu sabia que aqui não queria chegar, que devia ter utilizado todas as forças que tinha para mudar a direcção do meu destino. E era possível, creio eu.
Alguém me devia ter dito, mas ninguém o fez. Somente eu, diante do espelho, senti a frustração de estudar em áreas que não gostava e trabalhar em empregos que não me competiam. Aos 20 anos, julgava ser tarde demais para voltar atrás e tentar tudo de novo. Aos 33... bem, aos 33 chego à conclusão que nunca é tarde. Para nada, muito menos para voltar a estudar, ler mais e mais e tentar ser alguém – ou pelo menos ser o alguém que se quer ser e não outro qualquer.
Apenas me entristece este País, onde me sinto condenada à frustração, porque não me permite sonhar e alcançar, como era suposto permitir. Este País, que me ensinou os valores da liberdade e da cultura, que me incentivou a concluir os estudos superiores, que me financiou estágios académicos e profissionais, este País está moribundo.
Em tempos, não me deu uma bolsa de estudo na área de Argumento porque eu tinha estudado Turismo. Não me aceitou em trabalhos relacionados com a escrita, porque eu tinha estudado Turismo. Não me deu subsídio de desemprego, porque tinha trabalhado a recibos verdes. Não me ajudou na consolidação do meu próprio negócio, porque não tinha subsídio de desemprego. E permitiu sempre, que trabalhasse mais de 40 horas semanais a troco do ordenado mínimo, sem objecções. Permitiu que me empregassem, como técnica superior, mas com salário correspondente a técnico profissional, sem pestanejar. Permitiu que o meu primeiro contrato de trabalho fosse aos 31 anos!! E depois, vê-me na rua, sem eira nem beira, e não se digna sequer a perguntar se eu vou bem.
Este País, que tira descaradamente o poder de compra a quem trabalha, que nos acorda a meio dos sonhos, para que não sonhemos mais. É este o País que me resta.
E agora, que a empresa onde estou tem os dias contados. Onde os ordenados que nem eram maus de todo ameaçam nunca mais aparecer nas nossas contas. Numa empresa em que se aposta – em jeito de brincadeira para exorcizar tristezas – os dias que nos restam até chegar a carta de despedimento e onde se passam oito horas a inventar coisas para se fazer, porque já nos retiraram o trabalho que havia, o tédio volta a apoderar-se de mim, como se tivesse estado adormecido e alguém, de repente, o tivesse acordado com um par de estalos bem dado.
E começo a encher-me de entretenhas, paranóias e rotinas. Apática que estou em relação a tudo isto. Não temo o desemprego, que esse já o conheço bem e trato por tu. Temo o País onde vivo, que apesar de livre que é, me vai cortando a pouco e pouco as vazas (mais valia que me enfiasse uma burca e me vedasse o direito ao voto). E se não há trabalho, não há dinheiro, não há consumo, não há estudos, não há viagens, não há roupa, nem livros, nem discos. Há fome e uma enorme tristeza de ter sonhado ser alguém, aqui mesmo e durante 33 anos, num país chamado Portugal.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nesta cidade, a esta hora.

A esta hora, nada é fácil nesta cidade. Nem mesmo a loira - de mini-saia e número de telefone publicado em anúncio de jornal - encostada ao poste, do outro lado da estrada, o é. Não a esta hora, talvez mais tarde.
Entramos na carruagem, o frio da manhã fica lá fora, mas entra um bocadinho dele connosco, só porque sim. O ar condicionado ainda dormita e das colunas, sai a voz da Serenella Andrade - ou sua sósia vocal - mais alta do que é costume, anunciando uma próxima estação.
Ao nosso lado, senta-se uma rapariga visivelmente deprimida, quase a chorar. Todo o semblante mereceria algum respeito, se ela não ostentasse um farfalhudo bigode de leite. Rimos à gargalhada, não conseguimos evitar. Como daquela vez em que vimos um pombo coxo a atravessar a estrada e nos perguntámos: Porque não voa?! Porque não voa?! E rimos que nem uns perdidos, a imaginar o nosso vizinho perneta a atravessar a estrada com o pombo ou então - mais gargalhadas ainda - a voar e o pombo cá em baixo, coxeando e praguejando, entre buzinadelas. A visão do nosso vizinho a voar, levou-nos às lágrimas.
Juntos, somos uma piada que só faz sentido a quem ainda está bêbedo como nós. E será que os pombos coxos também coxeiam ao voar? Fiquei maldisposta com tanto rir.
Apalpas-me uma mama e eu dou-te uma bufetada. Quem te vê fazer isso, ainda pensa que tu gostas de mulheres! - De mulheres não, mas de mamas e vaginas sim. As pessoas começam a olhar-nos de atravessado. Há limites para quem está a caminho do trabalho. Não há paciência para nada, muito menos para dois bêbedos que ainda não se deitaram e não encontram nada mais divertido do que andar de metro às sete da manhã. Aposto que aquela senhora que está ali, toda vestida às cores, tem vontade de nos mandar para aquele sítio. A sorte dela é que nós vamos sair já a seguir e continuar a bebedeira nalgum café perto da estação, junto de outros bêbedos, daqueles profissionais. Lembras-te quando pagaste o pequeno-almoço a três fulanos que estavam em liberdade condicional? Por amor da Santa, tens com cada ideia!
Já são mais tropeços, do que passos. Não consigo falar sem enrolar a língua e alterar a ordem das palavras que quero dizer. Começa a ser surrealista demais. A espera por um galão e um pão de leite com queijo e fiambre demora horas. Nada é fácil, nem mesmo arrancar uma palavra ao senhor atrás do balcão. Vou lá para fora, acender um cigarro e esperar que o meu pequeno-almoço se concretize. Há ali um chafariz que diz: "Doado à Sociedade Protectora dos Animais". Reparo que um pombo e o nosso vizinho perneta, despercebidamente juntos, bebem água dali. E eu pergunto-te: Porque não Voam? E tu cospes metade da cerveja para cima do balcão. Gargalhada geral, nós e os bêbedos profissionais.
Está na hora de ir. Deixo-te junto à paragem de autocarro - a rir sem parar - e subo a rua íngreme que me separa de uma outra rua e da minha casa. Quase que caio por três vezes, graças à calçada desalinhada. Passo em frente à pastelaria do bairro. O meu vizinho giro acordou cedo e bebe um café ali, mesmo em frente à montra dos pastéis de nata e dos rissóis de camarão.
Finjo ignorá-lo. Logo agora que eu me encontro neste estado: despenteada, pintura esborratada e com o andar afectado pelo álcool. Digo bom dia à Cláudia, trabalhadora da noite, sempre bem composta e arranjada, e subo até casa. É tão bonito o Tejo, visto da minha janela. Dou comida ao gato e adormeço no sofá.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Uma palavra sem sentido, sai-me da boca gasta. Tinhas os dedos enrolados nos meus e o teu olhar de espanto tornou-se tédio e em menos de nada desapareceu. Ofereci-te uma colher de azeite, que dizem ser benéfica para as coisas que carecem de benefícios. Deste-me alho cru em troca. Mastigámos ruidosamente enquanto observávamos os malabarismos dos actores em pleno acto pornográfico. Contei-te um segredo que te fez rir alto e bom som. Disseste que gostavas assim de mim, tal como eu era: badalhoca e brincalhona. Corei e arrotei a alho. Não pedi desculpa, beijei-te.