sexta-feira, 21 de março de 2014

Retrato (uma prosa transformada poema para o Dia da Poesia)

Um retrato pendurado na parede.
Uma senhora antiga, muito bem vestida, olhando o infinito em tons sépia.
No chão, deitado sobre um colchão velho, mira o retrato da parede,
Pedindo clemência.

Pelo chão, fotografias suas, desbotadas, de outros tempos.
Aqueles em que fora feliz.

Não há nada a perder neste tempo em que vive.
O quarto, emprestado, é o último tecto que lhe resta.
A manhã, que lhe entra pela janela, a última memória que o assombra.
O relógio, sempre atrasado, é o último tempo que conhece.

Nada mais sobra, dele e do tempo que passa.

Nas suas mãos encardidas, as memórias vão-lhe surgindo, através de velhas fotografias dela.
Houve um tempo, passado, que o fizera sorrir.
Houve um tempo, esquecido, que fora o único tempo em que quisera estar presente.
Tudo o resto era ele, um resto, uma sombra.
Um desespero.

Tinha sido um homem.

Tinha amado como ninguém aquela que desbotada lhe sorria,
Fotografia após fotografia, pelas mãos gastas.
Era ela quem ainda lhe trazia luz,
Para além da manhã que lhe entrava pela janela.
Era ela quem ainda lhe acendia os cigarros,
Que ele fumava, um atrás do outro,
Naquele espaço tão complicado em que se tornara a sua própria vida.

Não entendia os anos que tinham passado.
Não os sabia contabilizar.
Não os conseguia medir, nem mesmo olhando para o relógio,
Nem tão pouco através das rugas que lhe moldavam o rosto.

As suas mãos, pesadas,
Escrutinavam todos os retratos.
O de uma senhora antiga que não conhecia, os dela que lhe passeavam pelos dedos e lhe davam voltas ao coração.
A miséria, não era aquele quarto, não era aquele colchão.
Era ele.


(texto original de 12/2010)

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