quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Tudo se compõe

Tudo se compõe, agora que dois estranhos se abraçam a meio de uma viagem. Propósito: amparar as lágrimas de ambos. Resultado garantido, sem reclamações.
Tudo se compõe. O mendigo que te metia nojo, revelou-se teu amigo. Revelou-te segredos e também algumas duras verdades. Falou-te da árdua tarefa que é perceber sentimentos através dos rostos cansados que deambulam por aí, ao final do dia.
Tarefa estranha. Estranho ser. Afinal, o seu olhar esgazeado, significava apenas A Procura. Todo o seu sangue derramado, não significava nada. Ferimentos ligeiros, escandalosos.
Tudo se compõe. A linha do metropolitano sorri-te. Só a ti, a mais ninguém. A linha do metropolitano reconhece-te, aqui neste lugar ou noutra qualquer estação estrangeira. Seja qual for o teu percurso.
A linha sorri-te. Convida-te a saltar. Propõe-se engolir tristezas e esmagar problemas, os teus. E tu, aceitas. E, os estranhos que choram abraçados, assustam-se com o travar repentino da carruagem e abraçam-se ainda mais. E beijam-se.
Tudo se compõe. Tudo, nada significa. Grito de socorro.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Recomeçava do Zero

Começava do zero, sempre que se afundava em matemáticas. Recomeçava do zero, mas a tendência para esquecer os prefixos era óbvia. Afundava-se em questões gramaticais, também. Questões ortográficas. Questões semânticas.
Inclinava-se para as questões, de todas as formas e feitios e esquecia que estava apenas a recomeçar do zero. Somava, multiplicava, dividia e acabava subtraído. Subtraído até ao tutano. Até ser nada mais e nada menos que zero.
E congratulava-se de estar exactamente no meio de uma imaginária linha que separava o negativo do positivo, até ao infinito.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Há dias


Há dias em que não me apetece ler ou escrever, apenas olhar. Focar uma paisagem que me afecta ou transtorna, para depois desfocá-la e apreciá-la de novo.
Há dias, em que todas as imagens que valem mais que mil palavras, valem mais do que todo o significado da minha existência. E não precisam de ser fortes ou reais. Basta imaginar para logo me deter a contemplar.
Há dias, em que não me apetece ler ou escrever. Não me apetece trabalhar, nem tão pouco estar. Há dias em que me apetece somente olhar.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Nouvelle gothique

E agora, só preciso de vida. Depois de me ter deliciado na simulação da minha própria morte. Depois de ter sentido a sensação limpa de me banhar no charco do meu próprio sangue. Depois de me ter feito belos laços com as minhas vastas entranhas e de ter trincado tenros nacos dos meus próprios órgãos vitais. Depois de ter suspeitado que nada mais restava do meu corpo desfeito. Nessa suspeita, apercebo-me que afinal sobrou algo. Sobrou-me uma alma esfarrapada, mas viva. Uma alma exausta, mas sedenta de vida.
E agora, só preciso de vida. Nada mais do que vida. Empresta-me os teus pulsos. Estou pronta para regressar e não há pulsação melhor do que a alheia.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Acordo no exagero de ti
Tudo o que fui, deixei para lá do que era.
E o que eras,
Apenas foi uma hipérbole do que poderíamos ter sido.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

É feriado. Chove.

É feriado. Chove. Encontro-me sentada a ver os carros que lá fora passam. A água que salta para o passeio. A água que salta para cima de outros carros. Lá alto no céu, quando a chuva abranda, voam gaivotas que se riem de nós, seres inferiores.
É feriado. Chove. Encontro-me sentada a ouvir os carros que passam velozes lá fora. A ouvir o som que a água faz ao ser projectada nos passeios e noutros carros. Oiço a chuva que cai lá do alto do céu. E, quando esta abranda, consigo imaginar belas gaivotas a voar e a mirar o que se passa cá em baixo.
É feriado. Chove. E eu apenas consigo ouvir e ver o que lá fora acontece. Colocando-me lá fora também. Molhada. Sonora. Voadora.