terça-feira, 25 de outubro de 2011

Maria

Era Outono e caía, Maria, no charco.
Modesta criatura, de sonhos gigantescos, sofria de determinada aptidão, para cair, consecutivamente, nos mesmos buracos.
Era Outono e chovia, no charco, onde caía Maria.
Seca divindade, que o era por simpatia, ficar encharcada era apenas mais uma cruz que carregava e não temia.
Era Outono e morria, não Maria, aquela que jazia no charco vazia, mas outra qualquer, que farta estava de estar deitada, no seu leito, em agonia.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A espera

Ali naquela rua, todas as noites, o ritual repete-se: ele espera-a junto ao muro da biblioteca, à meia-noite, enquanto fuma cigarros ansiosos e espreita as horas pouco certas, sobre fundo verde, no relógio digital bem apertado no pulso esquerdo.

Sobram-lhe apenas dois cigarros no maço amarrotado que transporta no bolso das calças de ganga. O mesmo bolso que deixa escorregar, pernas abaixo, as moedas e as chaves que aí são metidas por mero acaso.

Escarradela sumária. Crucifixo e medalhinha em corrente dourada, caídos sobre o peito peludo e altamente avaliados no mercado dos valores sentimentais. Uma beata espancada, esmigalhada e humilhada pela ponta de um sapato engraxado, no Rossio, pelo senhor que também plastifica documentos, vende banana-pão e professa uma religião sem fins lucrativos.

Ela ainda não desceu. Coçam-se os acessórios do amor e acende-se o penúltimo cigarro. A impaciência é o seu nome do meio. Time is money, o seu lema e também o seu calcanhar de Aquiles.

Ela é loira e, espampanante, desce ao seu encontro. Mulher-cliché no mundo da prostituição: um corpo com demasiadas curvas, as raízes do cabelo pretas, um bâton tão vermelho quanto barato e uma celulite bem escondida por debaixo das meias de rede.
Olha para ele e masca a pastilha com a boca o mais aberta possível. Ele escarra em sinal de reconhecimento, dá-lhe uma palmada forte no rabo, abre a porta do Honda e, com um sorriso malandro, diz: "Com'é? Vamos trabalhar?"