sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A normalidade que me resta

Vamos despedirmo-nos disto tudo, sem olhar para trás um segundo. Escrevi-te eu, em jeito de despedida, na última noite que passaste comigo. Nunca mais voltaste. Deus é grande e no entanto, por muito que olhe, não o vejo. Nem para um último aDeus. Estou confusa e trago dentro de mim um estômago às voltas com a carne que comi acompanhada pela imagem sórdida de um sonho de ontem, meia-noite e picos, luz acesa na mesa-de-cabeceira até de manhã. Não há ternura que me me agarre mais ao leito de um sem-abrigo, do que o próprio agarrado à tigela da sopa fumegante. Dizem que o cartão não deixa passar o frio. Dizem que não há isolamento melhor. Deitei-me ali um bocado, mas pelo sim pelo não, optei por regressar a casa.
Não há tempo mais contado, do que aquela hora parada, braços cruzados, à espera de algo, no sofá.
Todas as manhãs. Todos os dias. A televisão aos berros, com gente aos berros lá dentro. E cá fora, cá estou eu, encolhendo-me, culpando-me, marcando números de telefone de valor certo mais IVA, para falar com o sorridente apresentador e ganhar um prémio. Sorte macaca de quem não tem saldo. Nem um telefonema consigo efectuar. O seu saldo não lhe permite efectuar a chamada pretendida. Vai morrer longe, tu e as tuas lérias, gravação inútil.
Há qualquer coisa verdadeiramente supérflua na minha rua. Não sei se é o cheiro a esgoto, se é a ratazana que esgravata nos sacos do lixo, se é o homem com três quistos sebáceos no alto da cabeça. Às vezes convenço-me que sou apenas eu, que estou a mais, com os meus rituais delinquentes, de ir meter as garrafas no vidrão, lavar os dentes e apanhar os dejectos do cão. Estou convencida que a normalidade não é mais aquilo que eu aprendi ao longo de trinta e tal anos de vida. Muito provavelmente é o inverso. E tudo o que aprendi, bem que pode ir parar ao lixo, ou ser atirado pela janela, para cair em cima dos turistas. Esses vândalos de máquinas fotográficas ao peito.
Temo pela sanidade do meu país, temo pela sanidade dos meus concidadãos. Também temo um pouco pela saúde débil daquele gajo que não conheço, que arrastava a botija de oxigénio no hospital no outro dia. Parecia coisa séria, mas lá por isso não devia andar para ali despenteado e a tossir em cima das pessoas. Já deve ter morrido. Ainda bem que estes casos estão controlados dentro dos hospitais.
À noite, junto à janela, fumo um cigarro e tento controlar-me. No meu sonho, tinha filhos e netos que me sentavam à mesa com uma camisa de forças vestida, para que não lhes fizesse mal. Fiquei assustada e tudo começou a fazer um estranho sentido para mim. Lá em baixo, os carros passam ligeiros, de médios acesos. O céu limpo, mostra-me que ainda há uma ou outra estrela que brilha, por cima da cidade, se a lua é nova. Fiquei louca ao pensar que tu e os outros me considerassem louca. Embalei-me num estranho pensar, delirei o que pude e o que já não podia.
Nada nos protege do frio, nada é supérfluo, toda a insanidade é relativa, como a demência, a deliquência, a debilidade. Mas tu foste e nem te deste ao trabalho de o tentar perceber.

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