terça-feira, 24 de novembro de 2009

Aquele

Ela não conseguia percebê-lo. Deitava-se a seu lado, acendia-lhe cigarros e dava-lhe festas nos cabelos. Mas não era suficiente. Nada era suficiente, tratando-se ele dele mesmo. Aquele que não pestanejava perante o ódio. Aquele que não tremia perante o amor. Aquele.
Aquele que era insensível a todo e qualquer altruísmo circundante. Aquele que não queria prestar-se a semelhante papel.
Mas ela sabia: bastaria cair a primeira folha de um promissor Outono, para que todo ele se transformasse naquele outro ser. Destronado, desmascarado e fustigado por sentimentos nostálgicos que não conseguia apagar, revelar-se-ia humano perante a chuva miudinha e o agasalhar de um casaco há muito esquecido no bengaleiro.
E ela aguardaria esse momento para lhe lembrar que aquele que se disfarça nas fogueiras e nos gelos doutras estações, tem parte da vida por resolver no seu coração.

domingo, 15 de novembro de 2009

Voltas

Não entendia como o mundo tinha dado voltas e tinha voltado ao seu lugar. Do costume. À hora marcada. Como sempre.
O pobre desgraçado, calcorreava as ruas e pedia cigarros a quem muito bem entendia pedir. Ninguém sabia. A cigarreira ia no bolso. Lado esquerdo, junto ao coração. Aí guardava religiosamente as suas cigarrilhas com suave aroma de baunilha. Aí tocava o crucifixo que pendia da corrente de ouro duvidoso, abençoando-as ao ritmo do seu caminhar.
O mundo e as suas voltas. Pensava. O mundo e as suas voltas que teimam e voltam a teimar. As coisas que passam de um hemisfério para outro. Os opostos unidos numa grande orgia glaciar. Pensava apenas, no mundo e nas suas voltas.
Crucifixo baloiçante. Cigarrilhas guardadas a cadeado de prata. Os cigarros alheios que sabem tão bem. As respostas tortas, os reprovadores soslaios. Todos juntos, nenhum mal lhe fazem. Concentra-se apenas na dor de pernas que tem. Nas subidas aqui. Nas descidas acolá. Nas corridas. Nas fugas.
O mundo foge de quem não lhe conhece os cantos. O mundo troca as voltas a quem não lhe compreende as voltas. O mundo é redondo, mas a rua que agora faz é plana. E aquela outra, também. O mundo não pode ser redondo. Não pode ter forma alguma. Deve ser abstracto.
Jornal gratuito na mão. Casaco desbotado. O pobre desgraçado encontrou um banco onde descansar. Procurou a cigarreira e sorriu. Falou para o Cristo da corrente de ouro duvidoso e, este último, concordou. Sabia que não estavam sozinhos, ele e os seus dois fiéis objectos. Sabia pelo cheiro que pairava no ar, que existia alguém por quem valia a pena continuar.
Levantou-se e não aguentou. Caiu, como se o mundo se tivesse voltado ao contrário e tivesse ficado de pernas para o ar. Morreu ali, a meio de uma passa numa cigarrilha com suave aroma a baunilha. A meio de uma conversa com um Cristo que não se fartava de baloiçar. Morreu antes de ter percebido que o mundo lhe tinha trocado as voltas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Rammstein e Eu

Era eu uma 'chavala' de cabeça-rapada-em-Dezembro, ou estava prestes a fazê-lo, quando ouvi pela primeira vez Rammstein. Du Hast. Fiquei doida porque era mesmo aquilo que eu procurava: electrónica aliada a um som de peso, que não conseguia decifrar muito bem e que ainda hoje tenho dificuldade em classificar somente como industrial ou meter ao industrial um sufixo gótico.
Era eu uma 'chavala' de cabeça-rapada-em-Dezembro, nos seus píncaros ou estava prestes a fazê-lo, quando duas amigas - daquelas que só se encontram uma vez na vida e a quem agarramos a mão com tanta força que nos é difícil aceitar que um dia seguirão caminhos opostos aos nossos - me ofereceram o Senhsucht, álbum que ainda hoje me faz pular de alegria de cada vez que o meto a tocar.
Os anos passaram. O cabelo rapou-se finalmente em Dezembro, o piercing no sobrolho foi feito, o cabelo voltou a tombar pelos ombros, a cobrir-me as costas. O piercing saiu. O piercing voltou. E o cabelo, esse deixou-se crescer e cortou-se à medida das necessidades visuais e duma adolescência e idade adultas repletas de boa música e rodeada de bons amigos.
Dei as mãos a quem mas estendeu graciosamente e larguei as mãos de quem estava farto do calor das minhas. E, finalmente, chega a almejada oportunidade de os ir ver ao Pavilhão Atlântico, naquela que foi para mim - e para todos os outros que lá estiveram presentes - a noite mais quente desse distante Novembro.
Dessa noite recordo o calor que nos atingia, vindo dos lança-chamas e demais artefactos pirotécnicos usados em palco. Recordo um vocalista que esbanjou energia e um público que humildemente 'arranhou' alemão para poder retribuir, nem que fosse apenas cantando em uníssono refrões simples. Recordo um final extraordinário com um bote a passear-se na plateia, enquanto era tocada uma versão maravilhosa (há poucas meus caros, muito poucas assim!) do Stripped dos meus adorados Depeche Mode. Finalizou-se assim um fabuloso concerto e o tempo avançou com as suas horas, dias e...
... Os anos voltaram a passar, teimosos e sacanas. Recordou-se, durante o passar desses mesmos anos, em numerosas conversas de café, o bom que era repetir aquela experiência, do bom que foi aquele concerto para nós seres privilegiados e abençoados. E, o cabelo voltou a crescer, os piercings a mudar de lugar, os amigos a agarrar e a soltar-nos as mãos e tudo se repete: Novembro, Rammstein e a promessa de muito calor.
Foi no passado Domingo, que se repetiu um bom concerto. Um iniciar de espectáculo com um partir de um muro, que para muitos dos presentes simbolizou o próprio de Berlim, ou outros muros que lhe deviam seguir o exemplo. Para outros nada significou para além de mais uma excentricidade 'rammsteniana'.
Ouvi tudo o que queria ouvir, mas não vi tudo o que queria ver. Mesmo que a pouca distância do palco, este foi mais um concerto em que tive uma praga de cabeçudos à minha frente. Mas acho que aprendi a lição e se as botas militares com sola dupla não são suficientes, passemos aos sapatos de salto que as senhoras costumam usar. Ou cheguemo-nos mais à frente e coloquemo-nos inoportunamente à frente de pessoas com menos 20 centimetros que nós.
Não há muito a acrescentar: foi Novembro, foi Rammstein. Foi a energia de sempre, o espectáculo de sempre e a música que fica para sempre. Só nós vamos ficando mais velhos.

Para finalizar, deixo a música que ficou a faltar no alinhamento deste Domingo, mas que tenho ouvido em repeat enquanto atravesso o Martim Moniz. Prometo que não há nenhum trocadilho barato acerca desta zona de Lisboa e o nome da música! (como sou boazinha, deixo uma versão legendada em inglês)

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Caminho

Há quem, nos autocarros, ostente cartazes feitos de cartolinas, visivelmente danificadas pelo tempo, com palavras de ordem escritas a sangue. Dessas palavras de ordem, vou morrer aqui é o que mais se lê. Há quem implore um ombro onde chorar e há quem grite por um abraço ao final do dia.
Há quem, nos autocarros, se detenha nos vidros maravilhado com o seu próprio reflexo. Há quem mande sinais de vapor para o exterior. Há quem se contente com um S.O.S. em código morse.
Passo ao lado da paragem. Reconheço os rostos e os cartazes daqueles que estão prestes a começar mais uma viagem. Detenho-me num rosto triste que grita Quero atenção! e perco-me na imensidão dos olhos que me segredam eu já fui feliz.
Mas caminho. Caminho porque nada mais há a fazer. Caminho ao lado da estrada, por um estreito passeio mal empedrado. Já sem os meus velhos cartazes, abafo os meus gritos desassossegados e entrego as palavras de ordem a quem queira fazer uso delas.
Sei o seu caminho de cor - do autocarro e dos seus passageiros permanentes - e percebo que não preciso mais de empunhar cartazes e desafiar os rostos que lá longe espreitam essa estranha demonstração de humanidade, que lá em baixo observam perplexos essa estranha viagem.
Agora. Desde há muito e principalmente agora. Sei por onde vou. Sei quem sou. E se por algum infeliz acaso me enganar no caminho, o mais provável é ir parar a um velho atalho meu conhecido, daqueles onde um dia ousei perder-me e aquecer-me no fogo quente dos cartazes usados, das palavras gastas e dos rostos obcecados.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Bem e mal

Bem fica aquele que não quer ficar,
Mal parte aquele que não quer partir,
Bem espera aquele que soube esperar,
Mal desiste aquele que só soube desistir.

Bem e mal,
Quero partir com a promessa de voltar,
Quero ficar sem para sempre ter que ficar,
Quero esperar por aquilo que hei-de alcançar
E não quero desistir daquilo que não hei-de conseguir.

Para o bem e para o mal,
Para o mal que me faz o bem
E para o bem que me faz o mal.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Um Segredo

Promete que me guardas um segredo. Um segredo bem guardado, a cadeado. Um segredo desconfiado, das paredes que têm ouvidos, das línguas feitas de trapos. Segura-o com carinho, não o deixes escapar, não o deixes espalhar-se pelos sete ventos, pelos quatro cantos do mundo. Um segredo numa mão fechada ou numa boca fechada, nas tuas. Promete que mo guardas com a mesma convicção com que me aguardas. Com a mesma força com que fechas as mãos e a boca e prendes as coisas que me queres dizer. Promete-me um segredo no meu regaço. No teu abraço. No nosso sonhar.

Abriu a Época...

... Das ressurreições blogosféricas. Seguindo o exemplo do meu grande amigo Bruto, ressuscito aqui e agora o Coisas Gordas e Más, para que ele não se sinta o único ressuscitado da vizinhança.
A seguir, segue-se uma reunião de trabalho com o João (que pretexto maravilhoso para se almoçar num bairro típico de Lisboa!), para ver se juntos reanimamos o Delírios (blogue à base de textos de um e fotografias doutro).
Felizmente, o único blogue das imediações que não precisa de uma Páscoa fora de época é o meu querido Carapuça Productions, que está muito bem de saúde e ao qual aconselho várias visitas, porque uma só não chega.
Restabelecendo as funções vitais deste blogue, comemoro então aqui e convosco a abertura oficial da Época das Ressurreições Blogosféricas: cheers!!