domingo, 15 de novembro de 2009

Voltas

Não entendia como o mundo tinha dado voltas e tinha voltado ao seu lugar. Do costume. À hora marcada. Como sempre.
O pobre desgraçado, calcorreava as ruas e pedia cigarros a quem muito bem entendia pedir. Ninguém sabia. A cigarreira ia no bolso. Lado esquerdo, junto ao coração. Aí guardava religiosamente as suas cigarrilhas com suave aroma de baunilha. Aí tocava o crucifixo que pendia da corrente de ouro duvidoso, abençoando-as ao ritmo do seu caminhar.
O mundo e as suas voltas. Pensava. O mundo e as suas voltas que teimam e voltam a teimar. As coisas que passam de um hemisfério para outro. Os opostos unidos numa grande orgia glaciar. Pensava apenas, no mundo e nas suas voltas.
Crucifixo baloiçante. Cigarrilhas guardadas a cadeado de prata. Os cigarros alheios que sabem tão bem. As respostas tortas, os reprovadores soslaios. Todos juntos, nenhum mal lhe fazem. Concentra-se apenas na dor de pernas que tem. Nas subidas aqui. Nas descidas acolá. Nas corridas. Nas fugas.
O mundo foge de quem não lhe conhece os cantos. O mundo troca as voltas a quem não lhe compreende as voltas. O mundo é redondo, mas a rua que agora faz é plana. E aquela outra, também. O mundo não pode ser redondo. Não pode ter forma alguma. Deve ser abstracto.
Jornal gratuito na mão. Casaco desbotado. O pobre desgraçado encontrou um banco onde descansar. Procurou a cigarreira e sorriu. Falou para o Cristo da corrente de ouro duvidoso e, este último, concordou. Sabia que não estavam sozinhos, ele e os seus dois fiéis objectos. Sabia pelo cheiro que pairava no ar, que existia alguém por quem valia a pena continuar.
Levantou-se e não aguentou. Caiu, como se o mundo se tivesse voltado ao contrário e tivesse ficado de pernas para o ar. Morreu ali, a meio de uma passa numa cigarrilha com suave aroma a baunilha. A meio de uma conversa com um Cristo que não se fartava de baloiçar. Morreu antes de ter percebido que o mundo lhe tinha trocado as voltas.

2 comentários:

Lucky Strike disse...

é o que dá fumar SG Crava...

Cristina H. disse...

Podes crer!
Sei q a tabaco dado não se olha a marca, mas as probabilidades de se fumar merda, são muito maiores, quando se anda por aí a cravar sem dó nem piedade.
(e não, não falo dessa 'merda', falo da outra)