quinta-feira, 25 de junho de 2009

Vivo nos subúrbios

Vivo nos subúrbios. Onde se cozinham racismos e xenofobias. Onde se praticam crimes e preconceitos. Onde se fabricam garotos auto-suficientes e descrentes de todo o potencial que encerram.
Vivo nos subúrbios. Onde param comboios com destino certo. Onde se assiste à miséria com a mesma impavidez que se assiste à riqueza. Onde se crê que nada para além disto existe, nem para o bem, quanto mais para o mal.
Vivo nos subúrbios. Onde a brisa fresca da tarde tresanda a álcool fétido e a suor nervoso de mais um dia de trabalho. Onde as discussões começam quando as portas e as janelas se fecham. Onde vidas mandam noutras vidas, até as anularem.
Vivo nos subúrbios. Onde tento abstrair-me da solidão que me cerca.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Seguimento lógico

Em primeiro lugar, sofre-se a frio, à custa de muita lágrima e insónia.
Em segundo lugar, vai-se à ervanária buscar produtos naturais adequados à situação.
Em terceiro lugar, deitam-se os produtos naturais fora e experimentam-se alguns anti-depressivos prescritos pelo médico de serviço na urgência do hospital.
Em quarto lugar, consulta-se um professor de origem africana ou uma velhota simpática que saiba ler nas entrelinhas da tristeza.
Por último, tomam-se umas mezinhas e chega-se à conclusão que tudo não passava de um mau-olhado.

sábado, 20 de junho de 2009

Brainjacking

Venho por este meio informar que fui vítima de brainjacking. Brainjacking é um crime violento cujo grande e único objectivo é, tal como o nome indica, roubar cérebros.
Ainda não refeita do cuecajacking, algo que me custou uns quantos euros em reposição de stock de cuecas cá em casa, dou por mim apanhada por meia-dúzia de larápios, bem vestidos e de oculinhos bem à moda do melhor marrão da escola, a fazerem-me frente num beco escuro, ameaçando-me e batendo-me sem dó nem piedade (em todo o lado menos na cabeça), até conseguirem sacar um dos meus bens mais preciosos: o cérebro.
Sei que há cérebros e cérebros e que o meu não é assim grande coisa, mas é o único que tenho. E, garanto, se me tivessem deixado colaborar, eu teria indicado cabeças mais interessantes e valiosas que a minha, que no fim de contas é apenas mais uma com massa cinzenta vulgar, revestida de tudo o que é mais vulgar num ser humano e com um conteúdo pouco interessante da perspectiva do marrão da escola ou do pseudo-intelectual de um qualquer quadrante político, seja ele de que extremo for.
E assim, deixando-me perplexa, completamentamente indefesa e sem cérebro, sem forças para me mexer ou para berrar socorro nesse mesmo beco escuro, fiquei eu sem cérebro, o que é uma verdadeira maçada*. Ou, numa versão optimista da coisa, uma verdadeira oportunidade para me desculpar sempre que não me apetecer fazer coisas como pensar, andar, comer, falar ou até mesmo viver.
E nisto tudo, tenho saudades dos cuecajackers. Cuecas há muitas e baratas e a coisa até se levava, no final de contas, mais-ou-menos bem, apesar da idiotice e da violência. E pergunto-me: para quando o sadnessjacking? É que ele há dias que eu até pagava para me roubarem as tristezas à base de murro e pontapé...

*na versão original, escrevi massada em vez de maçada... cuidado: a burrice e a iliteracia são uns dos primeiros sintomas das vítimas do brainjacking!

terça-feira, 16 de junho de 2009

Saudades de um bicho

Tenho saudades de um bicho gordo e peludo e branco e surdo. Tenho saudades do seu guizo. Tenho saudades de o ver à janela, como quem não quer a coisa, à espera que alguém apareça. Tenho saudades das sestas que dormia com ele. Tenho saudades dos seus bigodes a roçar na minha cara para me acordar. Tenho saudades das suas asneiras: das idas para cima da mesa-de-cabeceira, dos tapetes fora do lugar. Tenho saudades das suas brincadeiras com o cão. Tenho saudades dos seus ronrons e dos seus miaus. Tenho saudades de ter a roupa preta cheia de pêlos brancos. Tenho saudades de muitas outras coisas que não consigo enumerar.

Tenho saudades de um simples gato. De um simples gato que, conjuntamente com um simples cão, me fez descobrir que o amor vai muito para além de seres e raças. Que me fez assumir a certeza de amar os meus bichos de quatro patas, muito mais do que muitos outros de apenas duas.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O Funeral

Tal como as restantes pessoas presentes no cortejo fúnebre, ao ver o carro funerário chegar à porta do cemitério, não conseguiu esconder a felicidade que era vê-lo finalmente morto e enterrado.

sábado, 13 de junho de 2009

O baile

Acabados de acordar, apertaram as mãos, desejaram boa sorte e saíram. Lá fora, respirava-se um dia radiante de primavera: o sol brilhava fresco e as andorinhas preparavam atarefadamente os seus ninhos.
O padeiro chegara a horas, anunciando o pão fresco com a sua buzina e, sem tardar, os miúdos desataram a correr com as suas pesadas mochilas em direcção das suas aulas.
No largo da Igreja, distribuídos pelos bancos vermelhos, sentiram alívio quando finalmente ouviram anunciar, através de um altifalante, que o baile iria começar.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Taras e manias

O meu fascínio pela colecção dos quadros dos meninos chorões continua! Este quadro não veio comigo para casa, porque estava um pouco danificado. Só por causa disso!
Cada menino chorão esconde mensagens subliminares e coisas terríveis. Este, também esconderá algo, suponho. Talvez na horizontal e com a vista desfocada se veja um machado a decepá-lo.
Contudo, continuo a achar que o autor destes quadros estava algures entre o génio e o mau pintor. Mais para o génio, talvez.
Não sou de intrigas, mas aviso o descuidado que deitou fora esta relíquia que ouvi dizer que em Londres aconteceram coisas terríveis a quem ousou meter os meninos chorões no balde do lixo. Casas arderam! Pessoas morreram! (talvez por isso mesmo é que este não está dentro do caixote: para causar confusão à maldição)
Claro que isto tudo requer uma piadinha daquelas parvas: criançada, nada de fazer birras! Estão a ver a fotografia? Ir parar ao lado do contentor dentro de um saco de plástico é o que acontece aos meninos que andam por aí a fazer beicinho!
E, já agora um aviso para os pais: Não deitem fora os vossos filhos lacrimejantes, pois em resultado disso a vossa casa poderá acabar em chamas!
Decidi assumir a tristeza: não vou mais chorar baixinho.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Um dia

Um dia, mudarei de morada. Alterarei o meu código postal. Trocarei o norte pelo sul, o este pelo oeste. A janela, pela porta. A casa, pela tenda. A tenda, pelo quintal.
Um dia, será quanto baste para que parta e tudo mude, de arrasto, atrás de mim. E um dia, sem aviso prévio, a minha casa terá mudado de dono. E o meu telefone, atenderá telefonemas dizendo que não está atribuído.
Um dia, o meu rosto enrugar-se-à. A minha pele absorverá a cor das tatuagens e vincará as marcas de toda uma vida. Um dia, o meu cabelo será outro, mais curto e menos farto. E tudo aquilo que pensava ser eterno em mim, se desvanecerá.
Um dia, acordarei com a estranha notícia de que aqueles que amo já partiram, para nunca mais voltar. Um dia, apalpar-me-ei e sentirei um ser estranho e solitário em vez de mim. Um dia, olharei para o mundo como um velho lugar, que há muito conheço mas que já nada me diz.
Um dia. Dia após dia. Tudo acontecerá um dia. Tudo acabará um dia. Tudo principiará um dia. Tudo recomeçará um dia.
E haverá um dia, um único dia, em que nada mais fará sentido para mim.