quinta-feira, 24 de março de 2016

É este o filme.


É este o filme: uma actriz decadente, deixa morrer um cigarro nos lábios esborratados de vermelho. Em lingerie, move-se como um tigre enclausurado no sofá. Leu algures numa revista que era bipolar. Frequenta as sensações do diagnóstico. Faz escala nos diversos corações que visitou. Há nela a vontade de voltar ao útero da sua mãe e reaprender os gestos humanos mergulhada em liquido amniótico. Há nela o sentido prático de espalhar cinzeiros pela casa, de levar o lixo para baixo antes do saco se tornar demasiado pesado. Há nela o sentido literário de deixar revistas em cima do bidé, com astros que não mentem, com psicólogos cronistas que não se enganam. Há sempre papel higiénico que se acaba. É este o mote para se seguir em frente e caminhar directamente para a cama, onde se movem os lençóis com o peso dos gatos e os retratos de homens, muitos homens, muito inteligentes, lindos, apaixonados, cegos, desmembrados, mortos.
Há a sede da pré-ressaca, o medo de estômago ferido, o critério pouco rebuscado de se procurar lenha para se queimar. Há nela uma vontade de apressar a morte, fechar os olhos e perceber que já está, que nada mais a irá surpreender ou desagradar. Mas alguém bate à porta e, quando alguém bate à porta, tem que se atender.