quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Trinquei uma maçã

Trinquei uma maçã que me soube exactamente àquelas tardes frias e solarengas de Inverno da minha infância. Do tempo em que eu saía do refeitório do ciclo a mastigar maçãs enormes para as minhas mãos e seguia em direcção de mais uma tarde livre de aulas.
Trinquei uma maçã que me soube tão bem a férias de Natal. Ao cheirinho a lareira acesa que invadia a rua onde eu morava. À cor da caruma dos pinheiros do pinhal lá de trás, onde eu ia excitada apanhar cogumelos com o meu pai.
Trinquei uma maçã que me soube àquelas brincadeiras inventadas entre a rua em que morava e o prédio da minha melhor amiga. À loja de roupa que nos oferecia bonecas de pano e cromos de uma caderneta colorida só porque insistíamos muito, com os nossos olhos meninos e essa inocência muito infantil. Muito nossa.
Trinquei uma maçã que me levou até à sala de aula onde aprendi a escrever todas as palavras que hoje sei e mais aqueles poemas que entretanto perdi, mas que eram feitos de quadras compostas por versos todos eles com a mesma métrica, para que tudo soasse como deve ser.
Trinquei uma maçã que me recordou festas de aniversário feitas por adultos, mas nunca o calor de um aniversário comemorado em pleno Agosto. De meias sandes mistas e de bolos de bolacha escrupulosamente distribuídos em cima da mesa.
Trinquei uma maçã que me fez sentir a textura das plantas daquele canteiro, de onde eu resgatava caracóis para brincarem aos reis e rainhas em casas construídas por nós, meninas arquitectas de reinos felizes.
Trinquei uma maçã que me soube à sensação de revêr a minha bisavó nas férias, que me devolveu a vontade de correr juntamente com o meu irmão em direcção daquele forno branco que ela utilizava apenas para guardar caixas de fósforos vazias, que nós obviamente transformávamos em combóios de brincar.
Trinquei uma maçã que me recordou a tia-avó que me levava o lanche à escola primária e que, depois das aulas, passeava comigo pela cidade que eu nunca gostei, mas da qual nunca esquecerei o cheiro a maresia e a flores cor-de-rosa escuras, as mesmas que nós apanhávamos e que eram um chamariz perfeito para as formigas.
Trinquei uma maçã e senti o sabor do sal que fazíamos improvisadamente no terraço a partir da água do mar que trazíamos à hora de almoço nos nossos baldes de brincadeira.
Trinquei uma maçã que me fez percorrer uma vila no meu traje emprestado de dama antiga. Que me fez pedalar na minha bicicleta vermelha juntamente com os restantes catraios do bairro, que fez os meus pés sentirem de novo o conforto das botas de borracha, as poças de água; o jogo do mundo brincado na areia com um pau; a macaca e mais o elástico.

Trinquei uma maçã que me recordou que nada volta a ser como foi.

Um comentário:

Pedro Horta disse...

Mana.
Interessante como recordo exactamente esses momentos.
A nossa Bisavó Esperança, com as caixas de fsoforos,
Os Cromos,
Os lanches de Sandes Mistas cortadas ao meio,
O teu fato de Princesa...,
O sal no Terraço dos Avós...

Não sabia que te lembravas...

Guarda essas memórias bem guardadas, que eu também.

Beijinho