Oito horas passam-se, neste escritório, e nada acontece. Estou num estado de dormência tal que poucas capacidades motoras ou intelectuais me permitem mais do que ir aquecer a água à hora estipulada para o chá ou fazer uma salada à hora estipulada para o almoço.
As pessoas quando não têm quaisquer entretenhas, tornam-se apáticas, criam rotinas, desenvolvem paranóias e deixam de ser dinâmicas. Digo-o por experiência própria. Quem não se lembra – dos magníficos três ou quatros leitores assíduos deste blogue – dos tempos em que estive desempregada? Por duas vezes: uma quando me despedi do meu trabalho e decidi mudar-me para Lisboa e outra quando – assunto menos falado por estes lados – fechei a loja que tinha no Bairro Alto (projecto que durou aproximadamente um ano).
Da primeira vez, fiquei cerca de um ano, a bater com a cabeça em todas as paredes do pequeno T2 onde vivia, em Queluz. Da segunda, para além da cabeça, também impulsionei todo o restante corpo para as paredes, desta vez do pequeno T2 de Alfama. Para além do drama que é o desemprego, outro flagelo maior me preenchia os dias: tinham-se acabado as economias e carregava agora – e até meados de 2015 – um empréstimo bancário.
Quando regressei ao mercado de trabalho, depois de seis meses de auto-punição, lágrimas e questões existenciais, de uma forma muito naife, achei que tudo ia melhorar: a minha situação económica, a minha vida social, a minha vida afectiva, a minha veia literária. Tudo. Mas nada melhorou. Conheci dos piores lugares para se trabalhar neste e noutro universo e percebi porque tinha sido seleccionada: no desespero de algo arranjar, disse que sim a tudo o que a entrevistadora me apresentou como condições.
Trabalhei numa recepção de um Spa, envergando uma farda de gosto duvidoso, um rosto estupidamente maquilhado, horários que me obrigavam a acordar às 5h30 da manhã, uma única folga à terça-feira, o direito a um domingo livre de 15 em 15 dias e um ordenado mínimo para brincar à cadeira de gestão financeira.
Quando queremos promover a excelência dos nossos serviços, nunca devemos descurar o bem estar dos nossos funcionários. Funcionários tristes, mal-pagos e maltratados, nunca desempenharão funções com motivação e orgulho na empresa que representam e, na primeira oportunidade, tudo farão para arranjar um novo emprego ou, pelo menos, um atestado médico. Pensava eu que isto era senso comum.
Por portas e travessas, bem no final do meu contrato de seis meses, já outro emprego me esperava, aqui no escritório donde hoje escrevo. Escrevi a dita carta registada, pedindo a não renovação do contrato de trabalho, gozei 15 dias de férias e recomecei, noutro ambiente, noutros horários, noutra Avenida desta mesma Lisboa.
E é aqui que percebo que tudo o que passei, desempregada ou em regime de escravatura, não quero voltar a repetir. Não quero ter meses a fio, em que os dias não se distinguem uns dos outros, só se há chuva ou sol ou alguém aparece para me visitar. Não quero voltar a chorar, todas as manhãs, às 6 da manhã, porque vou para um sítio que anula todos os sonhos que tive, que me recorda todos os outros que não consegui realizar, que me anula enquanto ser humano e pensante e sonhador que sou.
Cresci formatada para estudar, para ter um curso e ser alguém. Alguém se esqueceu de supervisionar as áreas que estudei. Alguém se esqueceu de me dizer que não era humanidades no ensino secundário, nem tão pouco turismo no ensino superior, aquilo que devia seguir.
Alguém me devia ter dito para ler mais, em vez de andar a gostar das pessoas erradas e a ocupar o meu tempo livre a beber amêndoas amargas. Alguém me devia ter dito que se eu sabia que aqui não queria chegar, que devia ter utilizado todas as forças que tinha para mudar a direcção do meu destino. E era possível, creio eu.
Alguém me devia ter dito, mas ninguém o fez. Somente eu, diante do espelho, senti a frustração de estudar em áreas que não gostava e trabalhar em empregos que não me competiam. Aos 20 anos, julgava ser tarde demais para voltar atrás e tentar tudo de novo. Aos 33... bem, aos 33 chego à conclusão que nunca é tarde. Para nada, muito menos para voltar a estudar, ler mais e mais e tentar ser alguém – ou pelo menos ser o alguém que se quer ser e não outro qualquer.
Apenas me entristece este País, onde me sinto condenada à frustração, porque não me permite sonhar e alcançar, como era suposto permitir. Este País, que me ensinou os valores da liberdade e da cultura, que me incentivou a concluir os estudos superiores, que me financiou estágios académicos e profissionais, este País está moribundo.
Em tempos, não me deu uma bolsa de estudo na área de Argumento porque eu tinha estudado Turismo. Não me aceitou em trabalhos relacionados com a escrita, porque eu tinha estudado Turismo. Não me deu subsídio de desemprego, porque tinha trabalhado a recibos verdes. Não me ajudou na consolidação do meu próprio negócio, porque não tinha subsídio de desemprego. E permitiu sempre, que trabalhasse mais de 40 horas semanais a troco do ordenado mínimo, sem objecções. Permitiu que me empregassem, como técnica superior, mas com salário correspondente a técnico profissional, sem pestanejar. Permitiu que o meu primeiro contrato de trabalho fosse aos 31 anos!! E depois, vê-me na rua, sem eira nem beira, e não se digna sequer a perguntar se eu vou bem.
Este País, que tira descaradamente o poder de compra a quem trabalha, que nos acorda a meio dos sonhos, para que não sonhemos mais. É este o País que me resta.
E agora, que a empresa onde estou tem os dias contados. Onde os ordenados que nem eram maus de todo ameaçam nunca mais aparecer nas nossas contas. Numa empresa em que se aposta – em jeito de brincadeira para exorcizar tristezas – os dias que nos restam até chegar a carta de despedimento e onde se passam oito horas a inventar coisas para se fazer, porque já nos retiraram o trabalho que havia, o tédio volta a apoderar-se de mim, como se tivesse estado adormecido e alguém, de repente, o tivesse acordado com um par de estalos bem dado.
E começo a encher-me de entretenhas, paranóias e rotinas. Apática que estou em relação a tudo isto. Não temo o desemprego, que esse já o conheço bem e trato por tu. Temo o País onde vivo, que apesar de livre que é, me vai cortando a pouco e pouco as vazas (mais valia que me enfiasse uma burca e me vedasse o direito ao voto). E se não há trabalho, não há dinheiro, não há consumo, não há estudos, não há viagens, não há roupa, nem livros, nem discos. Há fome e uma enorme tristeza de ter sonhado ser alguém, aqui mesmo e durante 33 anos, num país chamado Portugal.