sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Era quase Natal

Era quase Natal e ele ainda não tinha dado por nada. Deitado no colchão encontrado, quase novo, encostado a um balde do lixo, passeava o olhar pelas fotografias dela. Descoloradas, as fotografias, reorganizavam-se nas suas mãos. E ela mantinha, em todas elas, os mesmos olhos, os mesmos lábios, o mesmo nariz.
Era quase Natal e ele acostumava-se ao cheiro estranho do colchão encontrado, quase novo, encostado a um balde do lixo. Acostumava-se ao duche rápido de água fria e à sopa, também ela fria, trazida por uma vizinha beata. Era quase Natal e as outras beatas, de tabaco de origem duvidosa, acumulavam-se entre o colchão e a porta do quarto. Ou o que restava dela.
Era quase Natal e, dos dedos encardidos não convencidos do fim daquele amor, nasciam novos cigarros e reorganizavam-se as fotografias, na esperança vã de um sinal. Recordavam-se encontros, beijos e abraços, noutros colchões, noutros quartos, noutros tempos.
Era quase Natal e não se lembrava que tinha fome, que a sopa fria podia arrefecer ainda mais e que as moscas acabariam por cair dentro dela e lutar até morrer. Era quase Natal e preferia afastar-se do prato e refugiar-se no quarto, segredando aos retratos palavras de amor, promessas de uma vida melhor, saudades absurdas e obscenidades permitidas.
Era quase Natal e ele, sem dar por nada, morria afogado em memórias inventadas, num colchão desfeito, encontrado no lixo.

4 comentários:

Anônimo disse...

Entre paredes escuras, vazias de sentimento, despidas de alegria, são muitos os que passam os dias entre delírios imaginados de realidades não vividas, sonhando vivências alternativas aos momentos actuais. Quando os olhos se abrem para a realidade, o corpo vai sucumbido ao desespero, a alma morre aos poucos...a vida um dia há-de parar!!! Até lá os sem-abrigo, cada vez em maior número,sonham retomar aquilo que perderam...a família, os amigos, o emprego, a casa...a vida!!!

Zahir

Liou Duvinini disse...

Interesante...

Augusto, o Lixeiras disse...

Lá está ela de volta dos caixotes do lixo outra vez... Você travalha no Departamento de Recolhas da CML?

Cristina H. disse...

Ainda não, mas estou a candidatar-me ao lugar. lol