quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O tempo. A morte. A incerteza. Todos juntos no meu bolso.

sábado, 12 de novembro de 2011

Pombos

Quando os pombos morrem como meninos, à mercê dos nossos sapatos pesados, sinto-me perdida em tudo quanto odeio. O trânsito. Os carros velozes e despreocupados. Duas pessoas à porrada. Uma mulher que não consegue esconder as lágrimas.
Onde os pombos jazem, tripas de fora, olhos desorbitados – nesse mesmo lugar – sentei-me eu ontem com uma bebedeira incapacitante. Ri, chorei e afirmei ser capaz de viver assim para sempre.
Na mala, o desespero de um último cigarro que não se encontra, de um isqueiro que não se encontra. De umas chaves de casa – que inoportunamente – se encontram e me empurram para o meu destino final. Nos olhos, o cansaço, a teimosia e a resistência ao primeiro raio de sol que se avizinha.
Quando os pombos nascem, não sei onde se encontram. Nunca os vi pequenos, indefesos, brincalhões aos tropeços. Sei que o fazem num lugar seguro, longe das minhas palavras, do meu descontentamento, das minhas juras sem fundamento, dos meus enganos sempre os mesmos.

Só os vejo mortos, a um canto do passeio, onde deambulo ressacada. Serenos, perfeitos. Semelhantes a um menino Jesus num presépio. Semelhantes ao meu sono profundo quando te esqueço. Fazendo-me compreender o efémero e o belo. Fazendo-me perder – enquanto perdura a caminhada – em tudo quanto odeio.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Luís Apanágio

Luís Apanágio – o deficiente mental que cortava os pés das flores que Dona Lurdes Fulcral vendia para casamentos, aniversários e, sobretudo, funerais – vivia com a sua mãe Matilde e a sua irmã Flora numa pequena casa, inserida numa ilha, no centro histórico da cidade.
Era conhecido, no lugar onde vivia, bairro pobre mas asseado, como um rapaz simples que gostava de ouvir as músicas do Leandro e cantar as da Ágata, enquanto caminhava solitário até à paragem do autocarro, mas também – e muito comummente – quando viajava de pé, baloiçando entre curvas junto a passageiros apertados e outros tantos mal-lavados.
Através das suas canções favoritas, aprendeu que existia um sentimento nobre chamado Amor, mas também um outro, forte e persistente, chamado dor-de-corno. E que no mundo inteiro, todo vasculhado e esmiuçado pelos sensos do amor, existia uma grande percentagem de pessoas que sofria por causa do sacana do sentimento.
Luís Apanágio, nos dias em que terminava o corte dos pés das Camélias e das Estrelícias mais cedo, folheava as revistas que a Dona Lurdes Fulcral acumulava distraidamente a um canto da casa.
Páginas e páginas de letras grandes e outras pequenas, umas vezes pretas, outras vermelhas, intercaladas por fotografias de senhoras e senhores sorridentes. Silhuetas, perfis, caretas e dentaduras brancas, reproduziam-se quase iguais, quase os mesmos, numa e noutra revista. Mas eram as letras, sinuosas, discretas, aos molhos ou solitárias, que levavam a mente de Luís Apanágio ao rubro, numa espécie de excitação sexual.
Toda a gente sabia a cara que ele fazia quando folheava a Nova Gente ou a TV Mais, mas ninguém entendia aquele dia em que ele gritou, bastante alto até, e assustou a maravilhosa Dona Suzete, que chorosa comprava uma coroa de flores para o funeral da sua amiga Dona Judite Inteira, vítima de cancro pulmonar, mas também sua tia-avó por afinidade e cumplicidade moral.
Aos gritos, seguiram-se duas ou três Margaridas violentamente torturadas pelas hábeis mãos de Luís Apanágio, que dominadas pela raiva que originou a gritaria, iniciaram nessas mártires coloridas, aquela que seria a chacina vegetal do dia.
Possuído por aquilo que ninguém compreendia, Luís Apanágio bebia longas goladas de água e perdia o fôlego e transpirava e sabia que não podia continuar ali, pois ninguém o podia ajudar, nem mesmo o senhor João Ferreira, guarda republicano reformado e bom samaritano, conhecido pelas suas boas acções em vésperas de Natal. Ninguém. Apenas aquela bicicleta, convenientemente deixada à porta da florista, o podia salvar.
Pedalou. Parou para beber água da garrafa que trazia na mochila. Voltou a pedalar. Perdeu o fôlego. Recuperou o fôlego e até acenou, com um sorriso alucinado, ao senhor Vasco Cunhal, encostado ao balcão do talho a mandar mensagens escritas à rapariga que lhe comprava iscas duas vezes por semana.
O dono da bicicleta, um forasteiro que tinha tido o azar de parar para um café n’O Escondidinho, ainda chamou “ó tu aí!” e correu, mas não conseguiu parar nem tão pouco alcançar Luís Apanágio, que pedalava a uma velocidade muito semelhante à da luz, deixando-se consolar, ao balcão do café, por uma rodada paga pelo senhor Alfredo “Sem-Medo”, pelo seu compadre e ainda pelo seu primo.
Chegado ao seu destino, Luís Apanágio irrompe pelo edifício adentro, esbaforido e já não tão certo dos motivos que o trouxeram ali. Recorda-se das pobres Margaridas que despedaçou e sente pena. Pergunta-se se a Dona Lurdes Fulcral o vai despedir e se o dono da bicicleta vai participar dele no posto da polícia. Acaba-se a água da garrafa que traz dentro da mochila. Encontra a Dona Emília Verdoega e aperta-lhe as mãos. Numa súplica, diz num tom de voz sereno e quase sem se notar a sua deficiência na fala:
- Professora, por favor, ensine-me a ler.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Maria

Era Outono e caía, Maria, no charco.
Modesta criatura, de sonhos gigantescos, sofria de determinada aptidão, para cair, consecutivamente, nos mesmos buracos.
Era Outono e chovia, no charco, onde caía Maria.
Seca divindade, que o era por simpatia, ficar encharcada era apenas mais uma cruz que carregava e não temia.
Era Outono e morria, não Maria, aquela que jazia no charco vazia, mas outra qualquer, que farta estava de estar deitada, no seu leito, em agonia.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A espera

Ali naquela rua, todas as noites, o ritual repete-se: ele espera-a junto ao muro da biblioteca, à meia-noite, enquanto fuma cigarros ansiosos e espreita as horas pouco certas, sobre fundo verde, no relógio digital bem apertado no pulso esquerdo.

Sobram-lhe apenas dois cigarros no maço amarrotado que transporta no bolso das calças de ganga. O mesmo bolso que deixa escorregar, pernas abaixo, as moedas e as chaves que aí são metidas por mero acaso.

Escarradela sumária. Crucifixo e medalhinha em corrente dourada, caídos sobre o peito peludo e altamente avaliados no mercado dos valores sentimentais. Uma beata espancada, esmigalhada e humilhada pela ponta de um sapato engraxado, no Rossio, pelo senhor que também plastifica documentos, vende banana-pão e professa uma religião sem fins lucrativos.

Ela ainda não desceu. Coçam-se os acessórios do amor e acende-se o penúltimo cigarro. A impaciência é o seu nome do meio. Time is money, o seu lema e também o seu calcanhar de Aquiles.

Ela é loira e, espampanante, desce ao seu encontro. Mulher-cliché no mundo da prostituição: um corpo com demasiadas curvas, as raízes do cabelo pretas, um bâton tão vermelho quanto barato e uma celulite bem escondida por debaixo das meias de rede.
Olha para ele e masca a pastilha com a boca o mais aberta possível. Ele escarra em sinal de reconhecimento, dá-lhe uma palmada forte no rabo, abre a porta do Honda e, com um sorriso malandro, diz: "Com'é? Vamos trabalhar?"

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Arrastar

Acho melhor não. O vento que se faz sentir, gela-me os ossos. As mãos, incapacitadas que estão, tremem na perspectiva insensata de um novo amor que não chega. Não conheço nada que não seja o caminho pisado pelo enforcado, todos os dias, a todas as horas. O mesmo caminhar, o mesmo pecar, o mesmo fim. A mesma mulher, a chorar, arrastando consigo a penúria e o lamento desse tormento que é perder alguém, agarrando a esperança que lhe resta ao terço que gira e rodopia e dança nos seus dedos.
Suponho que o fiz. Desejei um espaço imaculado, livre do desassossego e do burburinho, daqueles que me pretendiam velar. Arrastei os pés e as pernas e as memórias que se arrastavam a si próprias, para dentro de um buraco manifestamente puro, possivelmente falso. E por lá me deixei estar.
Agora estática. Sorumbática. Apática. A pessoa que fui, está lá encostada à pedra tumular. Observando o ritual negro de quem chora, de quem se despede, de quem leva flores e de quem as rouba no final. A pessoa que achava melhor não, que suponha o que fazia, deteve-se. Corrigiu um erro grave nas palavras de despedida. Riu-se. Tanto perfeccionismo de nada serviu à eternidade. Rosto fechado, pele morta. Agora dorme e não te esqueças.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Santa Apolónia

Santa Apolónia. Meia-noite. Os pombos sobrevivem às armadilhas e aprendem a andar, discretos, por entre os transeuntes. É aqui que recebes o meu abraço discreto quando te recebo nos meus braços. A calma prevalece e vence todas as outras coisas. Os homens bebem os últimos tragos e discutem um sem fim de barbaridades. Ao acaso, dois ou três se vão juntando aqui e ali para fumar um cigarro. Há silêncio depois dos sem-abrigo correrem famintos à ajuda que chega à porta. Há o calor de uma sopa. Há a vergonha e uma caixa de papelão, escondida… à vista de todos nós.
Santa Apolónia, mestre fazedora dos nossos abraços de reencontro e da morte lenta de quem por ali passa uma vida inteira. Relógio gigante que nos aponta as horas que são e aquelas que ainda hão-de surgir. Os minutos e os segundos que faltam, para que eu te vire costas, para que tu voltes a partir. Relógio imóvel na estação, que marca a compasso a vida dos outros, que diz ao mendigo quanto tempo falta para as portas se fecharem, as pessoas desaparecerem, ele adormecer e depois regressar o dia - o mesmo de sempre - mais uma vez, até quando a eternidade permitir.
Santa Apolónia. Curioso microcosmos onde me encontro perdida quando não tenho mais nada a perder. Quando te espero em vão, enquanto me equilibro, em pontas de pés, entre o cais e a linha, desafiando a sorte e a própria vontade de morrer.
Santa Apolónia. Luzes amarelas no lusco-fusco, que iluminam imperfeitos rostos que jazem à mercê de um esquecimento, de uma bebedeira mal bebida. O rio, vedado e esquecido, transporta barcos e mercadorias ao longo dos seus sonhos. Um táxi parte, vejo o teu rosto ensonado lá dentro. A noite foi longa, nada mais há a dizer. O meu corpo cansado, o meu discurso emocionado. Uma lágrima de raiva e duas de contentamento. Um piropo saído de uma boca desdentada, que passa ao acaso a meio do nosso último aceno. Eu sou estúpida e morro, envergonhada, em Santa Apolónia.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Aqui podia morar gente.



(imagem retirada ao acaso do blogue: http://dranibalribeiro.blogspot.com)

Entre o cais e o comboio

Entre o cais e o comboio, há um homem que morre. Aflito na sua vergonha, seguro na sua certeza. Há um homem, que sacode a água do capote, desse dia cheio de chuva, e deita-se à linha como se mergulhasse no mar, jovem e belo, naquele outro tempo que agora recorda com saudade. Há um homem que, num milésimo de segundo, revisita toda a sua vida e não se arrepende de nada. Deixando-se cair, deixando-se morrer. Abandona-se despreocupado, entre o cais e o comboio.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

As dificuldades de um blogger.

Por vezes, tenho dificuldade em escrever aqui. Passo dias a fio em que não me surge um tema nem uma palavra. Passo noites em claro, onde me ocorrem as mais belas metáforas, as mais confusas e apaixonantes histórias, para depois - já de manhã - o sono e o cansaço limparem-me tudo da memória, como se se tratassem de funcionários exemplares da empresa de limpezas contratada para o efeito.

Há dias em que estou realmente vazia. Vazia de ideias e de sentimentos, vazia de palavras, vazia de vontades. Dias em que sou uma cabeça oca que se senta frente ao computador a 'folhear' sites de notícias, a pesquisar conhecidos - daqueles que nem se gostava muito quando havia proximidade - numa das redes sociais mais badaladas do momento (sim, também estou lá). Nesses dias, é muito comum deixar-me levar por futilidades e interessar-me por quem casa, por quem morre ou por quem escandaliza o mundo com o seu peidinho chanel na festa da tia botox.

Chego muitas vezes a escrever textos que acho geniais para, depois de um refresh, desaparecerem para sempre no éter da blogosfera. Nessas ocasiões, que não são tão poucas quanto isso (mea culpa, porque escrevo directamente aqui sem cópia de segurança no word), torno-me violenta e, à cautela, afasto-me do computador e da escrita durante tempo indeterminado para fazer o luto devido ao texto perdido.

Nem sempre a folha em branco recebe a minha essência: aquilo que sinto mesmo nas minhas mais profundas entranhas e que me palpita ainda sem palavras compostas por letras. As palavras, aquelas que me caracterizam enquanto ser literário e que são geradas nesses meus locais recônditos, demoram-se, abrindo espaço a lugares-comuns dentro dos meus temas favoritos: amor, morte e miséria humana. Poesias fraquinhas. Textos pobrezinhos. É tudo quanto me sai nesses dias.

Não sou nem pretendo ser negra, num sentido depressivo e mórbido da palavra, como este espaço se pinta. Sou uma pessoa optimista que, apesar de se vestir de escuro e ouvir muita música classificada de gótica (sabe-se lá por quem, meu Deus!!). Sei rir-me das adversidades da vida e, a meio de um choro compulsivo, sou capaz de soltar uma gargalhada só porque me lembrei de uma boa piada. Contudo, as alegrias escritas nunca me convenceram e, apesar de as escrever de quando em vez, não as considero cativantes nem tão pouco poéticas.

Esta é a primeira vez que escrevo sobre mim desde há muitos meses ou, quem sabe, mais de um ano. Deixei de desabafar sobre a minha vida pessoal, porque este espaço não tem cadeado como um diário. Sei que perdi seguidores graças a isso, mas não há fórmula que agrade a todos. E havendo, este blogue tornar-se-ia tão impessoal, que eu própria não me reconheceria nele.
Inspiro-me em tudo o que me rodeia, mas nunca desabafarei a realidade. A última vez, estava desempregada. Depois disso o mundo deu as voltas de sempre, aquelas que o seu quotidiano permite e, a minha vida, deu mais umas quantas e fez-me ir dar voltas ao contrário e parar um pouco antes do ponto de partida. Recomeço, todos os dias, desde então. Não vos conto por opção.

A ficção será sempre mais interessante do que a minha realidade. A minha realidade será sempre muito mais interessante quando ficcionada. Nada do que escrevo é totalmente alheio à minha pessoa, porque afinal eu sou as palavras que escrevo. Todas elas e mais as entrelinhas.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Impiedade

Farta dos teus gestos, pratico a impiedade.
Não te alimento, não te sustento.
Agarra-te ao que resta de ti.

domingo, 10 de julho de 2011

Papa

Adoro quando o mundo cheira a papa. Adoro ver as pessoas com papa nos cantos da boca, com papa a escorrer-lhes pelo queixo. Pessoas adultas e emancipadas, que trajam bibes e choram quando se sentem perdidas.
Adoro quando o mundo é um ensopado gigante de vomitado de papa. Figos e mel e pequenos flocos - de uma doçura inqualificável - misturados com o suco gástrico de todos os seres humanos do mundo.
Adoro quando o mundo não é mais do que uma ligeira indisposição que me acorda, um capricho sádico que me ocorre, um vómito colectivo que evoco, só porque odeio este mundo, mais do que o resto, por ainda cheirar a papa de criança.

domingo, 29 de maio de 2011

A Lista de Compras

Demasiada humilhação esta, de te escrever de pé, num papel perfumado ridículo, a lista de compras que quero que me tragas antes da noite cair. A única folha que tenho. O único perfume que tenho. A única esferográfica que tenho. A caligrafia nervosa de quem prepara a mala às escondidas para o dia da partida. A ansiedade seca de quem tem fome e sede e desejo, tudo num só coração, pequeno e fraco demais para ser guardado em vão, dentro de mim.
Demasiada espera esta, dentro de um relógio que tem os minutos contados. Dentro de um poema que escrevo e amarroto, misturado com o leite e a manteiga que quero que tragas sem falta. Outro poema, inacabado. Outra lista, mais pequena, menos amanteigada. E eu, toda rasgada e perfumada, tal e qual esse papel perfumado ridículo.
Chego a fazer coisas sem nexo, enquanto procuro respostas para tantas outras, também sem nexo, que anteriormente fiz. Chego a procurar a razão dentro de um saco de aspirador cheio de pêlo de gato e cotão. Chego a espremer, quando nada mais há em todas as embalagens de todos os produtos que colecciono por aí. Pode lá estar tudo ainda. Posso acabar por me espremer, sem querer, e sair algo dentro de mim.
Cuido da casa, como queria que alguém cuidasse de mim. E no fim, bates-me à porta. Trazes um saco de compras e um sorriso pateta de quem adivinhou tudo aquilo que eu queria, para passar bem, mais uma noite, mais um dia, mais uma semana, mais uma temporada. Uma eternidade pegada. Uma guerra, uma intempérie. Um desassossego, um transtorno. Um desespero, um abandono.
Escondo, culpada, a lista e o poema. Trazes tudo o que eu queria, só te esqueceste de mim.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Da saudade, ainda.

Falo da saudade, ainda. Daquela espingarda encostada ao peito e daquele som estridente que anuncia o fim de um coração que bate.
Falo da saudade, ainda. Daquela condição infeliz de te reencontrar deitado, sem vida, de peito rasgado e coração arrombado.
Falo da saudade, ainda. Enquanto a loucura mo permite, prisioneira de quatro paredes almofadadas e de uma janela gradeada.
Falo da saudade, ainda. Quando corto os pulsos, com a mesma lâmina que me aparou o sofrimento.
Falo da saudade, ainda. Ao espelho, reconhecendo um rosto enrugado coberto de lágrimas secas.
Falo de saudade, ainda. Quando falo duma mulher morta, desassossegada por pensamentos que não conseguiu enterrar consigo.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

terça-feira, 26 de abril de 2011

Podias

Podias ter corrido para o outro lado da janela. Esperar que os pombos acabassem as suas tarefas lá em baixo e dizer olá. O mundo acaba quando pensas que vais só ali. De dentro dos teus olhos, não são só lágrimas que saem, mas também raios de luz que tu descontente pensas (mal) em guardar para ti.
Podias ter corrido, travessa acima, travessa abaixo, por debaixo de um guarda-chuva gigante, que ali passeava, nas mãos de um desconhecido.
Podias ter encontrado aquela moeda que tanta falta te fazia para comprar um maço de cigarros. Bastava-te tropeçar, se tu em vez desse estúpido teletransporte alucinado que usas, tivesses ousado calçar aquelas botas-com-falta-de-graxa e saído de casa, descido a rua, virado à esquina… et voilá!
Estupidamente, podias ter feito coisas muito menos estúpidas do que o somatório das horas em que vestiste a tua própria pele, masturbando-te orgulhoso diante do espelho. Podias ter vestido um fato corriqueiro e ter encontrado a magia de um certo dia que é diferente de um certo outro. Ali ao lado, do outro lado da janela, podias ter encontrado a alegria, enquanto exclamavas por ela!

As pessoas mortas, nas suas campas, riem-se de ti. As tuas desculpas são quase tão ridículas como as flores que trazias no dia do teu próprio funeral. Encenado, com certeza, que a tua vaidade não te permitiria morrer a sério.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Não, também não. Não é aqui que quero estar.

sábado, 12 de março de 2011

Na intimidade

As torneiras de todas as casas-de-banho pingam, pingam, pingam sem parar!
Um rato de esgoto, gordo e de pêlo ralo, à noite faz a sua visita aos restos do jantar.
Uma janela que não fecha e uma corrente de ar. Só no Inverno, para não variar.
O cheiro do vizinho, depois de um banho acabado de tomar (ou de simular).
As discussões do primeiro esquerdo, do segundo direito e de algures no terceiro andar.
A velha debaixo, sempre a roncar.
A ambulância a fazer escala à porta do prédio, todo o santo dia!
Sai velho morto, chega outro a coxear. Vizinho, hoje foi dia de azar?
Lá fora, uma escarreta embeleza o chão. E ao lado, um tesouro? Não, é um cagalhão.
Os catraios pintam bigodes no cartaz do candidato à presidência. Ele já tinha bigode, o Photoshop é que o apagou.
Uma senhora, toda aperaltada, diz um palavrão cheio de pêlos, pus e doenças venéreas. Há quem trema, há quem core, há quem desmaie, mas ninguém é capaz de o reproduzir.
É domingo, ali na tasca. E há jogo e cerveja e mulheres que em casa já sentem os chapadões bem levados depois do prolongamento.
Há sempre um amigo do alheio, um xunga e um paneleiro.
Há sempre aquela que anda com todos e aquela que nunca andou com ninguém.
E aquela outra, que guarda a cadeado, o nome dos mais respeitáveis homens do Bairro.
Cheira a maresia, a sardinha e a qu’isto-não-vai-melhorar.
Por precaução, mete-se a bandeira da nação na varanda a esvoaçar (e a desbotar).
A bem da Pátria, só se fala mal na intimidade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Tinha chegado sexta-feira

As velhas lambiam desalmadamente os seus santinhos agradecendo a absolvição de pecados já esquecidos. Os filhos agrediam os pais por não haver mais escola até segunda-feira. As criadas afoitas choravam depois de mais um par de testes de gravidez negativos. Os barcos ancoravam-se e apodreciam dentro do peixe que não tinha sido pescado. Os bêbedos reencontravam-se e bebiam largos goles de bebidas ácidas procurando a sobriedade prometida. As televisões retomavam as suas emissões a preto-e-branco para gáudio dos revivalistas. As aves retomavam os seus voos migratórios em busca doutros dias da semana, talvez dois ou três domingos. Os sapatos desprendiam-se dos pés e aconchegavam-se nas bermas das estradas, enquanto miravam enternecidos os acidentes rodoviários. As noivas rezavam terços e aguardavam sempre virgens pelo dia seguinte. Os retratos permaneciam amarelecidos nas suas molduras empoeiradas sobre os eternos napperons. Os homens puxavam cigarros e os cigarros deixavam-se fumar. As portas dos lares fechavam-se e lá dentro pessoas-animais gritavam.
Tinha chegado sexta-feira.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Lixo

E eles regressam e trazem consigo caixotes pesados.
Caixotes pesados, que trazem vazios.
E eles carregam-nos às costas.
E eles erguem-nos com os seus fortes braços, calcorreando ruas infinitas,
Sem temer os olhares indiferentes de toda a gente.

À noite, enquanto dormes.
À noite, enquanto caminhas pelo corredor da tua pequena casa, sonolento.
À noite, enquanto apagas a luz, desesperado.

O lixo à tua porta, parte para sempre.
O lixo que te atormenta, rompe os sacos e espalha-se no chão.
E eles apanham-no.
E eles recolhem-no.
E eles retiram-no do teu campo de visão.

E o lixo que tu és, ficará para sempre fechado em vácuo.
Num saco, a um canto do quarteirão.
Não és orgânico, nem tão pouco reciclável.
E não há quem te possa carregar.

E no entanto, eles partem e levam consigo caixotes ainda mais pesados.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Rios

A minha vida tem rios. Rios que correm descontrolados, agitados, cinzentos. Rios que cheiram a maresias, maresias que cheiram a distantes pescarias, onde os mares engolem os odores das águas doces dos rios.
A minha vida tem rios. De margens recortadas por mãos humanas. De dejectos descarregados nos seus leitos. De marés vazias sempre cheias. De corpos bicados por gaivotas a boiar distraídos.
A minha vida tem rios. Rios de peixes mortos a correrem poluídos. Rios vazios, rios secos e rios subterrâneos. Rios clandestinos e rios com nomes de mar.
A minha vida tem rios e eu morro de sede.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Tudo o que faço

Tudo o que faço, mede-se pelo compasso desacertado do teu relógio parado.
(daí esta minha sensação de estar sempre no mesmo lugar, estática, deixando para depois aquilo que poderia fazer)
Tudo o que faço, de nada serve, portanto.
E, tudo o que serve, de nada me faz.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O Amolador II

Não quero mais esperar pelo amolador, enquanto limpo o sangue fresco das facas espetadas no teu peito, depois de mais um dia de trabalho.

O Amolador

O Amolador desce a rua na sua velhinha yeh-yeh. O seu avô ensinara-lhe a profissão que nunca quis aprender, da qual nunca soube viver. O avô, contara-lhe velhas histórias, de ruas cheias de velhas, de facas em punho, para amolar. O amolador esqueceu-se do seu avô, num lar. Nunca lhe ouviu os conselhos e nem sequer gosta da melodia que aprendeu à lareira, nessa infância distante, cinzenta e fria.