quarta-feira, 31 de março de 2010

Banco de Jardim

A piada não estava, obviamente, na criança sentada naquele banco de jardim, brincalhona e esperta, sorrindo ao mundo com a sua inocência feliz, mas sim no velho que se tinha sentado a seu lado, morto.

terça-feira, 23 de março de 2010

A Escritora II

E a partir de agora, deixa-te estar aí sossegada. Sentada e ausente. Não escrevas mais nada. A tua escrita tornou-se saturante. Ninguém mais te compreende e o que tu pensas jamais fará sentido.

quinta-feira, 18 de março de 2010

A Escritora

Quando a liam, violavam-na um bocadinho. E era isso que lhe doía: não a dor de escrever, mas a dor de ser dada a ler.
Gostaria de ditar os seus textos e fazer deles ditaduras onde não coubessem livres interpretações, nem tão pouco conclusões pouco precisas sobre a sua personalidade.
Daria às palavras um só significado: o seu. Nenhuma palavra, sendo sua, poderia correr para braços alheios significando outra coisa que não aquela em que fora pensada antes de ser escrita.
Seria assim que gostaria de ser lida, doutra forma, não faria sentido, pois não seria sua a escrita.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Chovia II

Sempre o inquietara a forma hipócrita como os homens da meteorologia anunciavam que amanhã iria ser mais-um-lindo-dia-de-sol. Por diversas vezes, cuspiu no televisor depois de ouvir - outra vez! - essa mentira. Por diversas outras, chegou a dar um pontapé no balde que amparava a água que vinha do tecto. Foram muitas as noites em que observou a água do balde a espalhar-se pelo chão da sua pequena sala. Foram muitos os dias em que resmungou obscenidades acerca das mentiras recorrentes dos homens da meteorologia.
Chegava mesmo a ficar constrangido ao ver os seus vizinhos saírem de casa, carregados de filhos e demais familiares, sem um único guarda-chuva. Sem um único impermeável, meu Deus!! Sentia-se envergonhado com a loucura alheia, com a negligente forma como as pessoas lidavam com a chuva. Escondia a cara, corava, pedia perdão e mudava de nacionalidade sempre que visionava aquele espectáculo decadente protagonizado pelas pessoas debaixo de chuva.
A ele, era cada vez mais complicado perceber porque os meteorologistas teimavam em mentir e porque é que as pessoas se deixavam enganar, ignorando que o céu que contemplavam estava apenas negro de chuva sempre a cair.
Perdeu a cabeça, quando nem em casa conseguiu escapar à eterna intempérie: chovia em todas as divisões; o balde da sala já não era suficiente para amparar a água que se infiltrava em toda a estrutura; o sofá e a cama, ensopados, eram a personificação do desconforto; a humidade entranhara-se nos seus ossos e nos seus bens; os seus dedos, engelhados, já não tinham cor nem força, nem tão pouco reflectiam vida; os seus livros eram pasta de papel e tudo o resto, bolor.
Acreditando num sol brilhante e quente para além da morte, afogou-se na banheira com a água da chuva recolhida pelo balde da sala, a mesma água que já há muito o apagava dos anais da humanidade.
Tranquilo e alheio à chuva que teimava em cair, encheu os pulmões de água e deixou-se entrar numa outra dimensão. Num misto de lucidez e irrealidade, de fé e clarividência, findou-se a meio de um murmúrio: As pessoas! As pes-so-as! Meu Deus, perdoai-Lhes!

Chovia

Chovia desde que se lembrava de si. Chovia desde aquele dia em que fora concebido, com amor e suor, pelos seus pais. Chovia, desde então, até ao dia que hoje era: homem, certo de vir a encontrar o sol num dia próximo, no fundo de um corredor, na esquina de uma rua, num sorriso alheio, numa chávena de chá.
Chovia naquela calçada que subia apressadamente. Das telhas, caía água enraivecida que lhe batia no guarda-chuva como se o quisesse rasgar. Chovia até ao fim da subida. Chovia em todas as pedras da calçada, em todos os degraus, sem excepção. Chovia-lhe em cima, mesmo quando abrigado num toldo de café.
Todavia, era da chuva que tinha saudades. Da chuva promissora dos primeiros dias de aulas, das poças de água que desafiava com as suas botas de borracha, da lama que trazia para casa. Era o som da chuva a mais bela melodia que tinha ouvido, tocada em telhados de zinco, em janelas, em árvores. Sempre perfeita.
E só tinha conhecido a chuva, em toda a sua vida. Nada mais do que chuva. Forte, fraca, aguaceiros e temporais. Sempre a chuva! Mas o sol...
O sol haveria de chegar naquele dia que era hoje. Apressado que estava em viver mais este dia, nem se tinha dado conta que o primeiro raio de toda a sua vida, lhe inundava o rosto e lhe tingia as faces de um tom rosado. E não era preciso ter encontrado o amor. Não se tratava de encontrar o amor, de ver noutro rosto a metade que lhe faltava. Não se tratava de nenhum romance épico nem de nenhuma interminável novela. O sol, não era isso e, por isso mesmo, era muito mais.

*

Por vezes, as pessoas esquecem-se que o sol aparece quando se fecha o guarda-chuva. Ele esquecera-se disso a vida inteira, até ao dia que era hoje.