sábado, 15 de dezembro de 2012

Nove da Manhã

Segunda-feira, nove da manhã. Toda a gente sabe que nesse dia, a essa hora, ela bate a porta do prédio com força e segue rua abaixo, de salto alto vermelho escuro, mala a condizer, pouco baton e um risco castanho-dourado, nos olhos, assimétrico e mal conseguido.
A pequena mala balança com o andar saltitão proporcionado pela pressa, pelos saltos e pela calçada maltratada das ruas de Lisboa.
Segunda-feira, nove e dez da manhã. Primeira paragem: a pastelaria do bairro. O rapaz ao balcão sabe, que nesse dia e a essa hora, ela entra cheirosa estaminé adentro. A máquina sabe que o café sairá directamente de uma das suas bicas para dentro de uma chávena escaldada. O pacote de leite adivinha a minúscula gota que deitará só para dar um ar de sua graça. Ao balcão, aos lábios, a ela.
Duas moedas de vinte, uma de dez e uma de cinco para pagar conta certa, enquanto amarrota um guardanapo de papel a dizer bem-vindo na mão gorda povoada de apertados anéis.
Segunda-feira, nove e um quarto. Sai apressada da pastelaria, entre bons dias e acenos, rumo à paragem do autocarro. O tempo está todo pensado, minuciosamente pensado, para que não se atrase, para que nada a atrase, nem tão pouco o semáforo, nem o mendigo alcoolizado, nem o piropo vindo da porta do talho. Paragem após paragem, sente o fraquejar das pernas e da maquilhagem. Sente o palpitar do coração, esse ser independente que habita dentro de si.
Segunda-feira, nove e cinquenta e seis. O vento sabe que se soprar mais forte corre o risco de a despentear. O tempo sabe que se correr mais lento é provável que ela não saiba abrandar. A hora de visita é às dez. São quatro minutos de espera, numa sala vazia. O frenesim da manhã hospitalar não a abala. Uma sirene ou outra que se faz ouvir, não a incomoda. Uma enfermeira simpática, em sua direcção, quase lhe escapa aos sentidos. “Venha por aqui”.
Segunda-feira, dez e um da manhã. Entra no quarto que parece uma camarata, oriunda de um filme de guerra. Atravessa os destroços humanos, os suspiros humanos, os restos humanos. Tudo faz para que o seu perfume não se faça sentir, tudo faz para que nada a faça sentir. Abordada pelo médico, esconde o pânico depois de ouvir “Não sabemos se sobreviverá”. Ainda há minutos tão digna, respira fundo e avança. Ele está cá. Ele ainda está cá. Ninguém lhe fechou os olhos, não há nenhuma máquina que apite ao ritmo do seu coração. “Esperei por ti” diz-lhe uma voz vinda das profundezas daquele pré-cadáver. “Eu sei que sim”. Aperta-lhe a mão com essa mão gorda, com toda a força que lhe sobra e mais alguma que não sabe de onde vem. Ele diz-lhe adeus, não até amanhã, não até para a semana. Não até logo. É o último suspiro e o final de uma vida em comum. Foram felizes amantes e o baton sabe que sim. Foram incógnitos amantes e a esposa dele soube que sim.
Segunda-feira, meio-dia e vinte. Regressada a casa, descansa nas lágrimas da solidão. Esborrata o risco castanho-dourado, abandona os sapatos a um canto, para não mais os calçar. Desliga o telefone, baixa a persiana, engole dois ou três comprimidos quaisquer e abandona-se na cama.
Nunca mais haverá segunda-feira às nove da manhã.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A normalidade que me resta

Vamos despedirmo-nos disto tudo, sem olhar para trás um segundo. Escrevi-te eu, em jeito de despedida, na última noite que passaste comigo. Nunca mais voltaste. Deus é grande e no entanto, por muito que olhe, não o vejo. Nem para um último aDeus. Estou confusa e trago dentro de mim um estômago às voltas com a carne que comi acompanhada pela imagem sórdida de um sonho de ontem, meia-noite e picos, luz acesa na mesa-de-cabeceira até de manhã. Não há ternura que me me agarre mais ao leito de um sem-abrigo, do que o próprio agarrado à tigela da sopa fumegante. Dizem que o cartão não deixa passar o frio. Dizem que não há isolamento melhor. Deitei-me ali um bocado, mas pelo sim pelo não, optei por regressar a casa.
Não há tempo mais contado, do que aquela hora parada, braços cruzados, à espera de algo, no sofá.
Todas as manhãs. Todos os dias. A televisão aos berros, com gente aos berros lá dentro. E cá fora, cá estou eu, encolhendo-me, culpando-me, marcando números de telefone de valor certo mais IVA, para falar com o sorridente apresentador e ganhar um prémio. Sorte macaca de quem não tem saldo. Nem um telefonema consigo efectuar. O seu saldo não lhe permite efectuar a chamada pretendida. Vai morrer longe, tu e as tuas lérias, gravação inútil.
Há qualquer coisa verdadeiramente supérflua na minha rua. Não sei se é o cheiro a esgoto, se é a ratazana que esgravata nos sacos do lixo, se é o homem com três quistos sebáceos no alto da cabeça. Às vezes convenço-me que sou apenas eu, que estou a mais, com os meus rituais delinquentes, de ir meter as garrafas no vidrão, lavar os dentes e apanhar os dejectos do cão. Estou convencida que a normalidade não é mais aquilo que eu aprendi ao longo de trinta e tal anos de vida. Muito provavelmente é o inverso. E tudo o que aprendi, bem que pode ir parar ao lixo, ou ser atirado pela janela, para cair em cima dos turistas. Esses vândalos de máquinas fotográficas ao peito.
Temo pela sanidade do meu país, temo pela sanidade dos meus concidadãos. Também temo um pouco pela saúde débil daquele gajo que não conheço, que arrastava a botija de oxigénio no hospital no outro dia. Parecia coisa séria, mas lá por isso não devia andar para ali despenteado e a tossir em cima das pessoas. Já deve ter morrido. Ainda bem que estes casos estão controlados dentro dos hospitais.
À noite, junto à janela, fumo um cigarro e tento controlar-me. No meu sonho, tinha filhos e netos que me sentavam à mesa com uma camisa de forças vestida, para que não lhes fizesse mal. Fiquei assustada e tudo começou a fazer um estranho sentido para mim. Lá em baixo, os carros passam ligeiros, de médios acesos. O céu limpo, mostra-me que ainda há uma ou outra estrela que brilha, por cima da cidade, se a lua é nova. Fiquei louca ao pensar que tu e os outros me considerassem louca. Embalei-me num estranho pensar, delirei o que pude e o que já não podia.
Nada nos protege do frio, nada é supérfluo, toda a insanidade é relativa, como a demência, a deliquência, a debilidade. Mas tu foste e nem te deste ao trabalho de o tentar perceber.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Línguas

Encenamos um beijo de despedida – acho que já escrevi isto. Ou li. Ou ouvi. Ou até mesmo cantei. Línguas que se cruzam, ligeiras, molhadas, à procura de outras línguas faladas. A vizinha espia-nos. Sabe tanto de nós que nos penetra os pecados com essa precisão de macho certeiro em tempos de cobrição.
Ninguém sabe o tempo que demoro a encontrar-te quando fecho os olhos e me entrego amante aos olhares da vizinha. Tinha ideia que o tempo contigo passava depressa e que a sorte era algo que trazíamos no bolso para qualquer ocasião. Para qualquer eventualidade sorrateira, que é ter-te debaixo do alpendre a protegermo-nos da chuva em pleno dia de Verão.
Trago na algibeira, do casaco desabotoado, dobrado, agarrado à mão, meia-dúzia de coisas fúteis que gostaria de fazer antes de morrer. Enumero-as uma a uma, por ordem alfabética, por ordem patética. Seria tão estúpido morrer sem fazer nenhuma.
Trazes no rosto cansado, uma imagem vaga de infância, daquelas que têm cheiros e cores e entes queridos que nunca mais viste. Talvez flores, imersas no colorido de uma primavera de bibe abotoado e mão enrugada segurando a tua mão. Nunca te perguntei o que é que essa imagem fazia, retida no teu olhar, quando sei que ela não te pertence, a ninguém pertence, se não a mim.
Digo-te adeus na única língua que sei falar, um adeus imperfeito num tempo condicional. O sino da Igreja dá-nos as horas que não sabíamos, olhamos para os relógios e conferimos que o tempo passou e que outro tempo há-de vir. Foco-me nas lembranças que se querem longínquas do que acabou por acontecer. Se hoje foi presente, amanhã será passado e no futuro lembrarei com todo o prazer.
Colecciono conjugações de actos, como quem colecciona retratos ou postais. Piso as migalhas de pão que a vizinha atira aos pombos. Ruidosa, fecho a porta. Transpiro por fora, estremeço por dentro. Há alguém que saiba o que foi feito de mim? Não tu certamente, que te foste. Evoco os meus amigos imaginários, sento-os à mesa, ofereço-lhes chá e apresento-lhes o meu caso. Debatemos à porta fechada o que foi feito daquela menina que ainda ontem brincava às barbies, sem saber uma palavra em estrangeiro. Ninguém sabe ao certo, ninguém mais a viu. Dizem-me, que da última vez que a viram, corria feliz.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

É como se tivesse sido condenada ao tédio.

Oito horas passam-se, neste escritório, e nada acontece. Estou num estado de dormência tal que poucas capacidades motoras ou intelectuais me permitem mais do que ir aquecer a água à hora estipulada para o chá ou fazer uma salada à hora estipulada para o almoço.
As pessoas quando não têm quaisquer entretenhas, tornam-se apáticas, criam rotinas, desenvolvem paranóias e deixam de ser dinâmicas. Digo-o por experiência própria. Quem não se lembra – dos magníficos três ou quatros leitores assíduos deste blogue – dos tempos em que estive desempregada? Por duas vezes: uma quando me despedi do meu trabalho e decidi mudar-me para Lisboa e outra quando – assunto menos falado por estes lados – fechei a loja que tinha no Bairro Alto (projecto que durou aproximadamente um ano).
Da primeira vez, fiquei cerca de um ano, a bater com a cabeça em todas as paredes do pequeno T2 onde vivia, em Queluz. Da segunda, para além da cabeça, também impulsionei todo o restante corpo para as paredes, desta vez do pequeno T2 de Alfama. Para além do drama que é o desemprego, outro flagelo maior me preenchia os dias: tinham-se acabado as economias e carregava agora – e até meados de 2015 – um empréstimo bancário.
Quando regressei ao mercado de trabalho, depois de seis meses de auto-punição, lágrimas e questões existenciais, de uma forma muito naife, achei que tudo ia melhorar: a minha situação económica, a minha vida social, a minha vida afectiva, a minha veia literária. Tudo. Mas nada melhorou. Conheci dos piores lugares para se trabalhar neste e noutro universo e percebi porque tinha sido seleccionada: no desespero de algo arranjar, disse que sim a tudo o que a entrevistadora me apresentou como condições.
Trabalhei numa recepção de um Spa, envergando uma farda de gosto duvidoso, um rosto estupidamente maquilhado, horários que me obrigavam a acordar às 5h30 da manhã, uma única folga à terça-feira, o direito a um domingo livre de 15 em 15 dias e um ordenado mínimo para brincar à cadeira de gestão financeira.
Quando queremos promover a excelência dos nossos serviços, nunca devemos descurar o bem estar dos nossos funcionários. Funcionários tristes, mal-pagos e maltratados, nunca desempenharão funções com motivação e orgulho na empresa que representam e, na primeira oportunidade, tudo farão para arranjar um novo emprego ou, pelo menos, um atestado médico. Pensava eu que isto era senso comum.
Por portas e travessas, bem no final do meu contrato de seis meses, já outro emprego me esperava, aqui no escritório donde hoje escrevo. Escrevi a dita carta registada, pedindo a não renovação do contrato de trabalho, gozei 15 dias de férias e recomecei, noutro ambiente, noutros horários, noutra Avenida desta mesma Lisboa.
E é aqui que percebo que tudo o que passei, desempregada ou em regime de escravatura, não quero voltar a repetir. Não quero ter meses a fio, em que os dias não se distinguem uns dos outros, só se há chuva ou sol ou alguém aparece para me visitar. Não quero voltar a chorar, todas as manhãs, às 6 da manhã, porque vou para um sítio que anula todos os sonhos que tive, que me recorda todos os outros que não consegui realizar, que me anula enquanto ser humano e pensante e sonhador que sou.
Cresci formatada para estudar, para ter um curso e ser alguém. Alguém se esqueceu de supervisionar as áreas que estudei. Alguém se esqueceu de me dizer que não era humanidades no ensino secundário, nem tão pouco turismo no ensino superior, aquilo que devia seguir.
Alguém me devia ter dito para ler mais, em vez de andar a gostar das pessoas erradas e a ocupar o meu tempo livre a beber amêndoas amargas. Alguém me devia ter dito que se eu sabia que aqui não queria chegar, que devia ter utilizado todas as forças que tinha para mudar a direcção do meu destino. E era possível, creio eu.
Alguém me devia ter dito, mas ninguém o fez. Somente eu, diante do espelho, senti a frustração de estudar em áreas que não gostava e trabalhar em empregos que não me competiam. Aos 20 anos, julgava ser tarde demais para voltar atrás e tentar tudo de novo. Aos 33... bem, aos 33 chego à conclusão que nunca é tarde. Para nada, muito menos para voltar a estudar, ler mais e mais e tentar ser alguém – ou pelo menos ser o alguém que se quer ser e não outro qualquer.
Apenas me entristece este País, onde me sinto condenada à frustração, porque não me permite sonhar e alcançar, como era suposto permitir. Este País, que me ensinou os valores da liberdade e da cultura, que me incentivou a concluir os estudos superiores, que me financiou estágios académicos e profissionais, este País está moribundo.
Em tempos, não me deu uma bolsa de estudo na área de Argumento porque eu tinha estudado Turismo. Não me aceitou em trabalhos relacionados com a escrita, porque eu tinha estudado Turismo. Não me deu subsídio de desemprego, porque tinha trabalhado a recibos verdes. Não me ajudou na consolidação do meu próprio negócio, porque não tinha subsídio de desemprego. E permitiu sempre, que trabalhasse mais de 40 horas semanais a troco do ordenado mínimo, sem objecções. Permitiu que me empregassem, como técnica superior, mas com salário correspondente a técnico profissional, sem pestanejar. Permitiu que o meu primeiro contrato de trabalho fosse aos 31 anos!! E depois, vê-me na rua, sem eira nem beira, e não se digna sequer a perguntar se eu vou bem.
Este País, que tira descaradamente o poder de compra a quem trabalha, que nos acorda a meio dos sonhos, para que não sonhemos mais. É este o País que me resta.
E agora, que a empresa onde estou tem os dias contados. Onde os ordenados que nem eram maus de todo ameaçam nunca mais aparecer nas nossas contas. Numa empresa em que se aposta – em jeito de brincadeira para exorcizar tristezas – os dias que nos restam até chegar a carta de despedimento e onde se passam oito horas a inventar coisas para se fazer, porque já nos retiraram o trabalho que havia, o tédio volta a apoderar-se de mim, como se tivesse estado adormecido e alguém, de repente, o tivesse acordado com um par de estalos bem dado.
E começo a encher-me de entretenhas, paranóias e rotinas. Apática que estou em relação a tudo isto. Não temo o desemprego, que esse já o conheço bem e trato por tu. Temo o País onde vivo, que apesar de livre que é, me vai cortando a pouco e pouco as vazas (mais valia que me enfiasse uma burca e me vedasse o direito ao voto). E se não há trabalho, não há dinheiro, não há consumo, não há estudos, não há viagens, não há roupa, nem livros, nem discos. Há fome e uma enorme tristeza de ter sonhado ser alguém, aqui mesmo e durante 33 anos, num país chamado Portugal.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nesta cidade, a esta hora.

A esta hora, nada é fácil nesta cidade. Nem mesmo a loira - de mini-saia e número de telefone publicado em anúncio de jornal - encostada ao poste, do outro lado da estrada, o é. Não a esta hora, talvez mais tarde.
Entramos na carruagem, o frio da manhã fica lá fora, mas entra um bocadinho dele connosco, só porque sim. O ar condicionado ainda dormita e das colunas, sai a voz da Serenella Andrade - ou sua sósia vocal - mais alta do que é costume, anunciando uma próxima estação.
Ao nosso lado, senta-se uma rapariga visivelmente deprimida, quase a chorar. Todo o semblante mereceria algum respeito, se ela não ostentasse um farfalhudo bigode de leite. Rimos à gargalhada, não conseguimos evitar. Como daquela vez em que vimos um pombo coxo a atravessar a estrada e nos perguntámos: Porque não voa?! Porque não voa?! E rimos que nem uns perdidos, a imaginar o nosso vizinho perneta a atravessar a estrada com o pombo ou então - mais gargalhadas ainda - a voar e o pombo cá em baixo, coxeando e praguejando, entre buzinadelas. A visão do nosso vizinho a voar, levou-nos às lágrimas.
Juntos, somos uma piada que só faz sentido a quem ainda está bêbedo como nós. E será que os pombos coxos também coxeiam ao voar? Fiquei maldisposta com tanto rir.
Apalpas-me uma mama e eu dou-te uma bufetada. Quem te vê fazer isso, ainda pensa que tu gostas de mulheres! - De mulheres não, mas de mamas e vaginas sim. As pessoas começam a olhar-nos de atravessado. Há limites para quem está a caminho do trabalho. Não há paciência para nada, muito menos para dois bêbedos que ainda não se deitaram e não encontram nada mais divertido do que andar de metro às sete da manhã. Aposto que aquela senhora que está ali, toda vestida às cores, tem vontade de nos mandar para aquele sítio. A sorte dela é que nós vamos sair já a seguir e continuar a bebedeira nalgum café perto da estação, junto de outros bêbedos, daqueles profissionais. Lembras-te quando pagaste o pequeno-almoço a três fulanos que estavam em liberdade condicional? Por amor da Santa, tens com cada ideia!
Já são mais tropeços, do que passos. Não consigo falar sem enrolar a língua e alterar a ordem das palavras que quero dizer. Começa a ser surrealista demais. A espera por um galão e um pão de leite com queijo e fiambre demora horas. Nada é fácil, nem mesmo arrancar uma palavra ao senhor atrás do balcão. Vou lá para fora, acender um cigarro e esperar que o meu pequeno-almoço se concretize. Há ali um chafariz que diz: "Doado à Sociedade Protectora dos Animais". Reparo que um pombo e o nosso vizinho perneta, despercebidamente juntos, bebem água dali. E eu pergunto-te: Porque não Voam? E tu cospes metade da cerveja para cima do balcão. Gargalhada geral, nós e os bêbedos profissionais.
Está na hora de ir. Deixo-te junto à paragem de autocarro - a rir sem parar - e subo a rua íngreme que me separa de uma outra rua e da minha casa. Quase que caio por três vezes, graças à calçada desalinhada. Passo em frente à pastelaria do bairro. O meu vizinho giro acordou cedo e bebe um café ali, mesmo em frente à montra dos pastéis de nata e dos rissóis de camarão.
Finjo ignorá-lo. Logo agora que eu me encontro neste estado: despenteada, pintura esborratada e com o andar afectado pelo álcool. Digo bom dia à Cláudia, trabalhadora da noite, sempre bem composta e arranjada, e subo até casa. É tão bonito o Tejo, visto da minha janela. Dou comida ao gato e adormeço no sofá.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Uma palavra sem sentido, sai-me da boca gasta. Tinhas os dedos enrolados nos meus e o teu olhar de espanto tornou-se tédio e em menos de nada desapareceu. Ofereci-te uma colher de azeite, que dizem ser benéfica para as coisas que carecem de benefícios. Deste-me alho cru em troca. Mastigámos ruidosamente enquanto observávamos os malabarismos dos actores em pleno acto pornográfico. Contei-te um segredo que te fez rir alto e bom som. Disseste que gostavas assim de mim, tal como eu era: badalhoca e brincalhona. Corei e arrotei a alho. Não pedi desculpa, beijei-te.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Coisas tolas de circunstância

Um aperto ao final das escadas, do lado esquerdo do peito.
Um abraço finalizado com um beijo.
Um suspiro mais forte que o sentimento.
Se me amas, não me amas certamente.
Porque quem ama pressente
Que todo este sufoco demente
Encostado à porta do prédio,
Realizado na mais clássica clandestinidade,
Não faz bem a ninguém.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Mesa

Braços estendidos, em cima da mesa. As mãos estendidas, numa súplica. Magras, lado a lado com a jarra de flores. Aquelas que sobraram da última ida ao cemitério. Aquelas que murcham mais depressa em casa, do que em qualquer outro lado, especialmente no cemitério. Onde os corpos e flores se conservam, por cima e por debaixo das campas. Onde mortos e pessoas coabitam, não por vicissitudes da vida propriamente ditas, mas porque o desespero é tamanho, que nada mais há a fazer.
Veias azuis, espreitando o rosto, o pescoço, o peito. Bata aberta, até onde se permite abrir, na ousadia de uma tarde de Verão. Em que uns dizem que sim, outros dizem que não. Os botões e os atilhos. Os espartilhos de antigamente. A cantiga que sai sempre igual, fanhosa e repetida, pela boca do rádio do quarto.
Uma lágrima, percorre lentamente o rosto e atravessa rugas e verrugas e um ou outro pêlo que vai aparecendo e cai distraída em cima da toalha impermeável da mesa. As lágrimas são minutos que passam no relógio do coração. Contadas, uma a uma, transformam-se rapidamente em infinito. E o infinito, é todo o tempo que se possa imaginar, mais todo o outro que não conseguimos sequer imaginar, multiplicados um pelo outro, vezes sem conta, até nos tirar o fôlego e a determinação para terminar a equação. O infinito é também o vazio que enche esta sala na escuridão. O infinito é um coração que bate, sem aurículas nem ventrículos, nem sangue nem veias. O infinito de tanto que é, torna-se nada e senta-se à mesa também.
Há coisas que só se entendem quando se sentam à mesa connosco. O leve tremor nas mãos, a dificuldade de espetar a linha no buraco de uma agulha, o verter do chá para uma xícara, o encontrar a cara com os dedos e procurar uma pista para tudo isto. Só se entendem quando se sentam connosco à mesa, solidários, companheiros, até que a morte nos separe.
Não há meia de descanso que aguente. A tarde passa, mais lá fora do que aqui dentro. O chá derramado, é pouco mas incomoda e tem que ser limpo. Não há dia nenhum que não seja bom dia para coser uma meia e falar do tempo com a vizinha do lado. Se o tempo soubesse o quanto estas pernas cansadas o amaldiçoam, trataria de ir pregar para outra freguesia, ali mais abaixo, do outro lado da rua.
Mas o tempo não sabe os estragos que causa, por estar sempre ali patente, encostado, todo empinocado, como se fosse dia de festa. O tempo não presta. Quanto mais estica, mais encolhe as pessoas e os seus membros. Quanto mais passa, mais probabilidade de desgraça. O tempo também bebe chá, também se olha ao espelho, quando depois de um banho dificultado por toda a parafernália do apoio domiciliário, pára sozinho no quarto, de cuecas, à espera que lhe tragam o andarilho.
E ela, parada, no refrão que vem lá do quarto, onde o rádio toca. Consegue resolver a equação do infinito e sorri. Os tremores desaparecem, a vizinha não está mais à janela: brinca com a neta, no parque, feliz. As flores não murcham mais, as veias desaparecem e a carne é devolvida aos braços e às pernas. O espartilho volta. O marido regressa, vivo, do cemitério. Preparado para a vida, como se nunca tivesse morrido. O mundo faz sentido. Uma xícara rola pela toalha de plástico e cai ao chão sem que ninguém a acuda, Não se parte. Ninguém parte. E o mundo fica.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Sangue no nariz

Acalmei um pouco e o resultado foi sangue a sair-me do nariz, anunciando a boa chegada da Primavera ou - para meu desespero! -  a boa-nova de que a vida um dia acaba e esta máquina, exausta de tantos maus-tratos, também falha.

Tinha o teu retrato na mão e um pedaço de pão com manteiga na outra, feita tonta, no meio da cozinha, a lacrimejar porque achava que assim a hora do lanche tinha mais por onde se lhe pegar. O telefone tocou. Do outro lado da linha de satélites apontados a nós, uma jovem falava-me das vantagens de uma parabólica em plena fachada de prédio centenário no centro histórico. Ouvi-a com a educação de quem já esteve lá, na grande fila para a entrevista para o lugar de comercial de telecomunicações. Recordei-me da história das percentagens de vendas e mais o contrato mensal de trabalho e ouvi-a até ao fim, sem nunca contrariar uma única palermice e dizendo que talvez, talvez para o mês que vem.

O teu retrato, recordo-o agora: tinhas menos cabelos brancos e ainda me lembro como tu – neste exacto retrato – ainda me fazias sonhar com a promessa de um amor que nunca deixaria de o ser. Agora, tantos anos passados, tantos lençóis trocados, tantos e-mails batidos, não me resta mais que a dor-de-corno, aquela eterna companheira de quem deixa fugir o seu primeiro amor com a primeira vaca que aparece e nada mais faz se não lamber chocolates e lágrimas e procurar a resposta nas projecções astrológicas de uma revista de euro e meio.

Não é que seja obtusa, mas não encontro especial interesse na minha vida, numa tarde como a de hoje: trancada em casa, pão com manteiga a mais, o teu retrato usado de mais, o pijama sebento de mais. Uma ou outra lágrima, seca, agarrada à maçã de rosto. E agora, o sangue, a sair-me do nariz, altivo, indiferente à dor que já é toda esta envolvente de desespero, de estar sozinha, num quinto esquerdo, com um gato a pedinchar comida, um coração a pedinchar razão e a porcaria a fazer-me comichão.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Tratado

Assino o tratado contigo. Renego aquilo que gostaria de ter tido, possuído, levado para um lado, só meu, no mapa do meu coração. Metade que te escondo, dizendo que não é nada, que é tão pouco e que a mim me basta, contudo percebendo os tesouros que se escondem, sedas, especiarias, incenso, em terras distantes que tu jamais saberás da sua existência. Até um dia. Aquele dia indiferente, Outono talvez, que me apanharás feliz, carregando ouro e diamantes, no olhar, no sorriso, nos pensamentos longinquos que me acompanham. Até esse dia, não saberás porque escolhi ficar no lado de cá, onde gente desonesta percorre as ruas, antevendo a morte e a má sorte de todos os outros que se arrastam, por ali, enquanto padecem de défice de caridade.
Mas eu sei porque fiquei, eu sei porque escolhi esta parte incerta. Eu sei porque assinei, mas já não me recordo porque estava farta de ti.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

32 anos - Retrato de um Passageiro


Escada rolante para o túnel. Gajas que gostam de gajas, em contramão, sobem de mãos dadas. Lá em baixo, uma senhora não consegue manusear o seu telemóvel e diz 'porra' com três pontos de exclamação. Alguém se esqueceu que tu adoras sapatos e odeias meias brancas. Alguém se esqueceu dos sapatos e só calçou as meias brancas. Metro: entra. Olha em volta e escolhe um lugar. Apertado, sujo, ao lado de alguém muito perfumado de unhas roídas e cabelo oleoso. Um solavanco e a marcha está retomada. O teu antigo amor regressou e sentou-se a dois metros de ti. Viu-te, reconheceu-te e baixou a cabeça para um livro bem mais interessante. Ris-te com a falta de imaginação dos pedintes. Parecem ter falhado a aula de escrita criativa sobre as imensas possibilidades literárias das palavras 'bondade' e 'esmola'. Olhas para o livro que esconde a cara do teu antigo amor. Afinal o bom gosto perdura para além dos anos confusos da universidade. Uma travagem mal conseguida, uma estação apinhada de gente. A validade do teu passe termina daqui a dois ou três dias, não te esqueças. Outras gajas, de mãos e corpos dados, beijam-se. As peúgas sem sapatos cheiram mal a uma distância impressionante. O teu antigo amor, muda de lugar e senta-se mesmo à tua frente. Rosnas-lhe com um sorriso trocista: agora só nos resta uma estação. Ninguém te ouve. E tu, o que fazes? Sabes que todo o tempo é pouco, pouco demais para mergulhar naqueles olhos e ficar por lá. Dás o teu lugar à senhora de casaco florido e sombrinha azul e sais logo a seguir, sem olhar para trás.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Zacarias

À sombra de uma estranha hipótese, Zacarias, trinta e seis anos, nascido a doze de Junho, vendia incoerências.