quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Santa Apolónia

Santa Apolónia. Meia-noite. Os pombos sobrevivem às armadilhas e aprendem a andar, discretos, por entre os transeuntes. É aqui que recebes o meu abraço discreto quando te recebo nos meus braços. A calma prevalece e vence todas as outras coisas. Os homens bebem os últimos tragos e discutem um sem fim de barbaridades. Ao acaso, dois ou três se vão juntando aqui e ali para fumar um cigarro. Há silêncio depois dos sem-abrigo correrem famintos à ajuda que chega à porta. Há o calor de uma sopa. Há a vergonha e uma caixa de papelão, escondida… à vista de todos nós.
Santa Apolónia, mestre fazedora dos nossos abraços de reencontro e da morte lenta de quem por ali passa uma vida inteira. Relógio gigante que nos aponta as horas que são e aquelas que ainda hão-de surgir. Os minutos e os segundos que faltam, para que eu te vire costas, para que tu voltes a partir. Relógio imóvel na estação, que marca a compasso a vida dos outros, que diz ao mendigo quanto tempo falta para as portas se fecharem, as pessoas desaparecerem, ele adormecer e depois regressar o dia - o mesmo de sempre - mais uma vez, até quando a eternidade permitir.
Santa Apolónia. Curioso microcosmos onde me encontro perdida quando não tenho mais nada a perder. Quando te espero em vão, enquanto me equilibro, em pontas de pés, entre o cais e a linha, desafiando a sorte e a própria vontade de morrer.
Santa Apolónia. Luzes amarelas no lusco-fusco, que iluminam imperfeitos rostos que jazem à mercê de um esquecimento, de uma bebedeira mal bebida. O rio, vedado e esquecido, transporta barcos e mercadorias ao longo dos seus sonhos. Um táxi parte, vejo o teu rosto ensonado lá dentro. A noite foi longa, nada mais há a dizer. O meu corpo cansado, o meu discurso emocionado. Uma lágrima de raiva e duas de contentamento. Um piropo saído de uma boca desdentada, que passa ao acaso a meio do nosso último aceno. Eu sou estúpida e morro, envergonhada, em Santa Apolónia.