quinta-feira, 24 de maio de 2012

Mesa

Braços estendidos, em cima da mesa. As mãos estendidas, numa súplica. Magras, lado a lado com a jarra de flores. Aquelas que sobraram da última ida ao cemitério. Aquelas que murcham mais depressa em casa, do que em qualquer outro lado, especialmente no cemitério. Onde os corpos e flores se conservam, por cima e por debaixo das campas. Onde mortos e pessoas coabitam, não por vicissitudes da vida propriamente ditas, mas porque o desespero é tamanho, que nada mais há a fazer.
Veias azuis, espreitando o rosto, o pescoço, o peito. Bata aberta, até onde se permite abrir, na ousadia de uma tarde de Verão. Em que uns dizem que sim, outros dizem que não. Os botões e os atilhos. Os espartilhos de antigamente. A cantiga que sai sempre igual, fanhosa e repetida, pela boca do rádio do quarto.
Uma lágrima, percorre lentamente o rosto e atravessa rugas e verrugas e um ou outro pêlo que vai aparecendo e cai distraída em cima da toalha impermeável da mesa. As lágrimas são minutos que passam no relógio do coração. Contadas, uma a uma, transformam-se rapidamente em infinito. E o infinito, é todo o tempo que se possa imaginar, mais todo o outro que não conseguimos sequer imaginar, multiplicados um pelo outro, vezes sem conta, até nos tirar o fôlego e a determinação para terminar a equação. O infinito é também o vazio que enche esta sala na escuridão. O infinito é um coração que bate, sem aurículas nem ventrículos, nem sangue nem veias. O infinito de tanto que é, torna-se nada e senta-se à mesa também.
Há coisas que só se entendem quando se sentam à mesa connosco. O leve tremor nas mãos, a dificuldade de espetar a linha no buraco de uma agulha, o verter do chá para uma xícara, o encontrar a cara com os dedos e procurar uma pista para tudo isto. Só se entendem quando se sentam connosco à mesa, solidários, companheiros, até que a morte nos separe.
Não há meia de descanso que aguente. A tarde passa, mais lá fora do que aqui dentro. O chá derramado, é pouco mas incomoda e tem que ser limpo. Não há dia nenhum que não seja bom dia para coser uma meia e falar do tempo com a vizinha do lado. Se o tempo soubesse o quanto estas pernas cansadas o amaldiçoam, trataria de ir pregar para outra freguesia, ali mais abaixo, do outro lado da rua.
Mas o tempo não sabe os estragos que causa, por estar sempre ali patente, encostado, todo empinocado, como se fosse dia de festa. O tempo não presta. Quanto mais estica, mais encolhe as pessoas e os seus membros. Quanto mais passa, mais probabilidade de desgraça. O tempo também bebe chá, também se olha ao espelho, quando depois de um banho dificultado por toda a parafernália do apoio domiciliário, pára sozinho no quarto, de cuecas, à espera que lhe tragam o andarilho.
E ela, parada, no refrão que vem lá do quarto, onde o rádio toca. Consegue resolver a equação do infinito e sorri. Os tremores desaparecem, a vizinha não está mais à janela: brinca com a neta, no parque, feliz. As flores não murcham mais, as veias desaparecem e a carne é devolvida aos braços e às pernas. O espartilho volta. O marido regressa, vivo, do cemitério. Preparado para a vida, como se nunca tivesse morrido. O mundo faz sentido. Uma xícara rola pela toalha de plástico e cai ao chão sem que ninguém a acuda, Não se parte. Ninguém parte. E o mundo fica.