quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O tempo. A morte. A incerteza. Todos juntos no meu bolso.

sábado, 12 de novembro de 2011

Pombos

Quando os pombos morrem como meninos, à mercê dos nossos sapatos pesados, sinto-me perdida em tudo quanto odeio. O trânsito. Os carros velozes e despreocupados. Duas pessoas à porrada. Uma mulher que não consegue esconder as lágrimas.
Onde os pombos jazem, tripas de fora, olhos desorbitados – nesse mesmo lugar – sentei-me eu ontem com uma bebedeira incapacitante. Ri, chorei e afirmei ser capaz de viver assim para sempre.
Na mala, o desespero de um último cigarro que não se encontra, de um isqueiro que não se encontra. De umas chaves de casa – que inoportunamente – se encontram e me empurram para o meu destino final. Nos olhos, o cansaço, a teimosia e a resistência ao primeiro raio de sol que se avizinha.
Quando os pombos nascem, não sei onde se encontram. Nunca os vi pequenos, indefesos, brincalhões aos tropeços. Sei que o fazem num lugar seguro, longe das minhas palavras, do meu descontentamento, das minhas juras sem fundamento, dos meus enganos sempre os mesmos.

Só os vejo mortos, a um canto do passeio, onde deambulo ressacada. Serenos, perfeitos. Semelhantes a um menino Jesus num presépio. Semelhantes ao meu sono profundo quando te esqueço. Fazendo-me compreender o efémero e o belo. Fazendo-me perder – enquanto perdura a caminhada – em tudo quanto odeio.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Luís Apanágio

Luís Apanágio – o deficiente mental que cortava os pés das flores que Dona Lurdes Fulcral vendia para casamentos, aniversários e, sobretudo, funerais – vivia com a sua mãe Matilde e a sua irmã Flora numa pequena casa, inserida numa ilha, no centro histórico da cidade.
Era conhecido, no lugar onde vivia, bairro pobre mas asseado, como um rapaz simples que gostava de ouvir as músicas do Leandro e cantar as da Ágata, enquanto caminhava solitário até à paragem do autocarro, mas também – e muito comummente – quando viajava de pé, baloiçando entre curvas junto a passageiros apertados e outros tantos mal-lavados.
Através das suas canções favoritas, aprendeu que existia um sentimento nobre chamado Amor, mas também um outro, forte e persistente, chamado dor-de-corno. E que no mundo inteiro, todo vasculhado e esmiuçado pelos sensos do amor, existia uma grande percentagem de pessoas que sofria por causa do sacana do sentimento.
Luís Apanágio, nos dias em que terminava o corte dos pés das Camélias e das Estrelícias mais cedo, folheava as revistas que a Dona Lurdes Fulcral acumulava distraidamente a um canto da casa.
Páginas e páginas de letras grandes e outras pequenas, umas vezes pretas, outras vermelhas, intercaladas por fotografias de senhoras e senhores sorridentes. Silhuetas, perfis, caretas e dentaduras brancas, reproduziam-se quase iguais, quase os mesmos, numa e noutra revista. Mas eram as letras, sinuosas, discretas, aos molhos ou solitárias, que levavam a mente de Luís Apanágio ao rubro, numa espécie de excitação sexual.
Toda a gente sabia a cara que ele fazia quando folheava a Nova Gente ou a TV Mais, mas ninguém entendia aquele dia em que ele gritou, bastante alto até, e assustou a maravilhosa Dona Suzete, que chorosa comprava uma coroa de flores para o funeral da sua amiga Dona Judite Inteira, vítima de cancro pulmonar, mas também sua tia-avó por afinidade e cumplicidade moral.
Aos gritos, seguiram-se duas ou três Margaridas violentamente torturadas pelas hábeis mãos de Luís Apanágio, que dominadas pela raiva que originou a gritaria, iniciaram nessas mártires coloridas, aquela que seria a chacina vegetal do dia.
Possuído por aquilo que ninguém compreendia, Luís Apanágio bebia longas goladas de água e perdia o fôlego e transpirava e sabia que não podia continuar ali, pois ninguém o podia ajudar, nem mesmo o senhor João Ferreira, guarda republicano reformado e bom samaritano, conhecido pelas suas boas acções em vésperas de Natal. Ninguém. Apenas aquela bicicleta, convenientemente deixada à porta da florista, o podia salvar.
Pedalou. Parou para beber água da garrafa que trazia na mochila. Voltou a pedalar. Perdeu o fôlego. Recuperou o fôlego e até acenou, com um sorriso alucinado, ao senhor Vasco Cunhal, encostado ao balcão do talho a mandar mensagens escritas à rapariga que lhe comprava iscas duas vezes por semana.
O dono da bicicleta, um forasteiro que tinha tido o azar de parar para um café n’O Escondidinho, ainda chamou “ó tu aí!” e correu, mas não conseguiu parar nem tão pouco alcançar Luís Apanágio, que pedalava a uma velocidade muito semelhante à da luz, deixando-se consolar, ao balcão do café, por uma rodada paga pelo senhor Alfredo “Sem-Medo”, pelo seu compadre e ainda pelo seu primo.
Chegado ao seu destino, Luís Apanágio irrompe pelo edifício adentro, esbaforido e já não tão certo dos motivos que o trouxeram ali. Recorda-se das pobres Margaridas que despedaçou e sente pena. Pergunta-se se a Dona Lurdes Fulcral o vai despedir e se o dono da bicicleta vai participar dele no posto da polícia. Acaba-se a água da garrafa que traz dentro da mochila. Encontra a Dona Emília Verdoega e aperta-lhe as mãos. Numa súplica, diz num tom de voz sereno e quase sem se notar a sua deficiência na fala:
- Professora, por favor, ensine-me a ler.