quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Desespero e esperança. Saem-nos das bocas e pairam no ar, mesmo à frente dos nossos olhos. Cegos, os olhos, o desespero e a esperança. Repetem-se e trocam-se: esperança e desespero. Olhos.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

À menina que habita os meus sonhos, vou dizer que o Papão já não tem mais fome, que os medos estão todos fechados a sete-chaves numa gruta distante. Vou dizer-lhe que o sol derrete os monstros e que as brincadeiras repelem os maus. Não lhe vou mentir, porque é tudo verdade.
E ela, finalmente, poderá percorrer o mundo na sua bicicleta vermelha.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Grãos de Areia

O amor que lhe tinha era tanto quantos os grãos de areia que fechou na sua mão naquele longínquo dia, naquela longínqua praia. Tentou contá-los, um a um. Embebedou-se com o brilho desse punhado de milhares de milhões de grãos de areia e percebeu-os doutra maneira, ali mesmo enquanto os observava. Eles eram a eternidade que ele nunca poderia alcançar. Eles eram os anos que irremediavelmente ficavam por viver até ao fim da eternidade. Eles eram os curiosos e brilhantes seres que habitavam o mesmo planeta que ele, mas também outras galáxias, e que ele jamais iria conhecer. Eles, pequeninos e infinitos, eram mais do que aquilo que alguma vez viria a ser. E uma gaivota riu-se.
Passou um Verão inteiro, mergulhado em grãos de areia, enquanto ela, sua adversária, bronzeava o corpo já moreno e lambia, secretamente, o sal parasita que se depositava nos seus braços de sereia. Ele amava-a, mas tinha descoberto que mais importante que esse amor infinitamente belo eram os grãos de areia. Esses tais que o metiam a pensar e a engendrar esquemas matemáticos para escapar à mortalidade humana que desprezava. Ele podia ser uma hipótese eterna. Ele podia ser um quebra-cabeças que milhares de milhões de homens, tão minúsculos e interessantes quanto os seus grãos de areia, iriam estudar e nunca, em parte alguma das suas contas, iriam perceber.
Desafiaria toda a ciência e até o próprio e hipotético Deus, ser omnipresente a quem recorria quando não tinha sequer dinheiro para pagar a uma prostituta por um quarto de hora ou uma hora num quarto. Tarde demais. Os grãos fugiram-lhe por entre os dedos. A sua sereia, seca e salgada, aconchegou-se e adormeceu e sonhou com ele. E ele viu e ouviu tudo e compreendeu: era estar ali, no melhor dos melhores momentos da sua vida, ou era partir de encontro à eternidade.
Anos confusos e escuros passam-lhe pelos olhos e quase esquece essa história da praia. Lava-se com água morna e um sabão azul e branco. Veste roupa interior lavada e há quem lhe ofereça umas peúgas novas e quentes. Faz a sua rotina, desde o banho ao pequeno-almoço. Esquece que já foi alguém que esteve perto de descobrir a chave da imortalidade. Ofende esse mesmo ser omnipresente que outrora desafiou. Depois arrepende-se e pede-Lhe desculpas e oferece-se para Lhe limpar a casa.
O mundo tornou-se numa aldeia grande, onde toda a gente o conhece e despreza. Conclui que o seu velho fato já a nada nem ninguém impressiona. Mete nojo aos mais novos e pena aos mais educados. Mas ninguém lhe oferece mais do que um olhar expressivo. E é aí, perante esses olhares de nojo e pena expressos, que se recorda dela e se arrepende para o resto dos seus dias. De tudo. Dele próprio. Do nojo que se tornou. Do banho diário e da caridade cristã. Da devoção que ele próprio teve por esquemas erráticos e contas envenenadas. De nunca a ter olhado nos olhos. De nunca ter recolhido dos seus lábios a simplicidade do sentimento mais complicado e cobiçado por todos: o amor.