sábado, 15 de dezembro de 2012

Nove da Manhã

Segunda-feira, nove da manhã. Toda a gente sabe que nesse dia, a essa hora, ela bate a porta do prédio com força e segue rua abaixo, de salto alto vermelho escuro, mala a condizer, pouco baton e um risco castanho-dourado, nos olhos, assimétrico e mal conseguido.
A pequena mala balança com o andar saltitão proporcionado pela pressa, pelos saltos e pela calçada maltratada das ruas de Lisboa.
Segunda-feira, nove e dez da manhã. Primeira paragem: a pastelaria do bairro. O rapaz ao balcão sabe, que nesse dia e a essa hora, ela entra cheirosa estaminé adentro. A máquina sabe que o café sairá directamente de uma das suas bicas para dentro de uma chávena escaldada. O pacote de leite adivinha a minúscula gota que deitará só para dar um ar de sua graça. Ao balcão, aos lábios, a ela.
Duas moedas de vinte, uma de dez e uma de cinco para pagar conta certa, enquanto amarrota um guardanapo de papel a dizer bem-vindo na mão gorda povoada de apertados anéis.
Segunda-feira, nove e um quarto. Sai apressada da pastelaria, entre bons dias e acenos, rumo à paragem do autocarro. O tempo está todo pensado, minuciosamente pensado, para que não se atrase, para que nada a atrase, nem tão pouco o semáforo, nem o mendigo alcoolizado, nem o piropo vindo da porta do talho. Paragem após paragem, sente o fraquejar das pernas e da maquilhagem. Sente o palpitar do coração, esse ser independente que habita dentro de si.
Segunda-feira, nove e cinquenta e seis. O vento sabe que se soprar mais forte corre o risco de a despentear. O tempo sabe que se correr mais lento é provável que ela não saiba abrandar. A hora de visita é às dez. São quatro minutos de espera, numa sala vazia. O frenesim da manhã hospitalar não a abala. Uma sirene ou outra que se faz ouvir, não a incomoda. Uma enfermeira simpática, em sua direcção, quase lhe escapa aos sentidos. “Venha por aqui”.
Segunda-feira, dez e um da manhã. Entra no quarto que parece uma camarata, oriunda de um filme de guerra. Atravessa os destroços humanos, os suspiros humanos, os restos humanos. Tudo faz para que o seu perfume não se faça sentir, tudo faz para que nada a faça sentir. Abordada pelo médico, esconde o pânico depois de ouvir “Não sabemos se sobreviverá”. Ainda há minutos tão digna, respira fundo e avança. Ele está cá. Ele ainda está cá. Ninguém lhe fechou os olhos, não há nenhuma máquina que apite ao ritmo do seu coração. “Esperei por ti” diz-lhe uma voz vinda das profundezas daquele pré-cadáver. “Eu sei que sim”. Aperta-lhe a mão com essa mão gorda, com toda a força que lhe sobra e mais alguma que não sabe de onde vem. Ele diz-lhe adeus, não até amanhã, não até para a semana. Não até logo. É o último suspiro e o final de uma vida em comum. Foram felizes amantes e o baton sabe que sim. Foram incógnitos amantes e a esposa dele soube que sim.
Segunda-feira, meio-dia e vinte. Regressada a casa, descansa nas lágrimas da solidão. Esborrata o risco castanho-dourado, abandona os sapatos a um canto, para não mais os calçar. Desliga o telefone, baixa a persiana, engole dois ou três comprimidos quaisquer e abandona-se na cama.
Nunca mais haverá segunda-feira às nove da manhã.