terça-feira, 12 de abril de 2016

Procrastinação

Tinha que começar. Um dia teria que ter algo para mostrar a alguém. Um texto. Um emaranhado de palavras, frases floreadas com adjectivações fortes. Um enredo. Algo que não fosse bem eu, mas alguém que eu conheça de perto, apesar da sua inexistência. Tinha ou teria que começar, mesmo que embarcando na terrível sensação de ter sempre qualquer coisa para fazer, qualquer coisa insignificante, como responder a um e-mail que se deixou pendurado durante dez meses, a dizer ‘desculpa, já não te deves lembrar de mim, mas aqui estou eu agora, totalmente disponível para trocar missivas contigo’ – a roçar o tédio e a vulgaridade. Aqui estou eu, a dizer que tinha ou teria que fazer algo que me corre nas veias e não é sangue, mas que me ocorre pensar como o propósito de aqui estar, sentada e dividida, entre coisas comezinhas como a lareira do vizinho, que me cheira tremendamente bem a Outono em casa dos meus pais, antes ou depois da escola, de galochas ou de pantufas, quentinha ou, coisas outras, como são as tarefas domésticas que estão sempre todas por fazer, especialmente na minha cabeça.

Tinha que começar, ou teria. A coisa perfeita que sei ser capaz, sem nunca a ter tentado antes. Mas a televisão, ora sem som, ora aos altos berros, passa mesmo aquela reportagem que eu nunca, em momento algum, gostaria de ver, mas agora, somente agora, faz-me todo o sentido, rebenta-me os sentidos. Ao ponto de chorar. A fome, a miséria dos outros, as crianças negligenciadas, os animais maltratados, os idosos abandonados. A carne a caminho do matadouro. Mas também, e sobretudo, a importância da Primavera e as suas pequenas flores e alergias – os espirros, meus companheiros – e o papel disto tudo, mais o papel que tenho, teria e tinha mesmo que ir buscar, para me assoar, enquanto escrevo infinitamente comentários em redes sociais, considerações patéticas sobre pequenos excertos cómicos ou simples vídeos que publiquei não apenas uma ou duas ou – ainda assim – três vezes, mas quinhentas vezes. Músicas que repito, sem fim, sem motivo concreto. E lá me detenho, nas letras, num ou noutro detalhe, dramático ou hilariante.

Levanto-me. Lembrei-me ou deveria ter-me lembrado – ou será que já me tinha lembrado antes? – que ainda não lavei os dentes depois do jantar. E do jantar, em plena digestão, ocorre-me – ou nunca parou de me ocorrer – que ficaram ali no lava-loiça um copo, um prato, um garfo, talvez uma tigela, por lavar. Que se não me despacho, amanhã mais um copo, outro prato, outro garfo, duas facas, uma chávena, se irão juntar à festa e, lá bem para o final da semana, talvez daqui a quatro dias, irei morrer soterrada em loiça suja, moscas e formigas por cima, as autoridades sanitárias à porta do prédio.


Mas havia sempre qualquer coisa para fazer, antes das outras que eu terei que fazer, ou tinha. Não sei se me lembro. Acho que era uma ideia, aquela que me perseguia e me enchia a cabeça e me fazia pensar que me teria que sentar, aqui na sala ou onde tivesse que ser. Que teria que me focar e ganhar coragem para me concentrar, perseguir o objectivo, agarrá-lo e amarrá-lo. Prendê-lo e só o deixar fugir, depois de cumprido, porque sabia, ou saberia – e sei-o tão bem – que depois disso, não haverá mais nada que se manifeste, por se impor e se acometer assim, desesperadamente entre mim e a minha escrita, estará uma casa limpa.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Um pobre,
Encharcado de castanho,
Percorre as suas pobrezas,
Pelo vazio dos seus bolsos,
Pelo roto das suas meias,
Até chegar à meta,
A sarjeta.

(Ter vida,
É um luxo supremo,
Tal como o cigarro quente,
Aos lábios,
Rente.)