sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Tinha chegado sexta-feira

As velhas lambiam desalmadamente os seus santinhos agradecendo a absolvição de pecados já esquecidos. Os filhos agrediam os pais por não haver mais escola até segunda-feira. As criadas afoitas choravam depois de mais um par de testes de gravidez negativos. Os barcos ancoravam-se e apodreciam dentro do peixe que não tinha sido pescado. Os bêbedos reencontravam-se e bebiam largos goles de bebidas ácidas procurando a sobriedade prometida. As televisões retomavam as suas emissões a preto-e-branco para gáudio dos revivalistas. As aves retomavam os seus voos migratórios em busca doutros dias da semana, talvez dois ou três domingos. Os sapatos desprendiam-se dos pés e aconchegavam-se nas bermas das estradas, enquanto miravam enternecidos os acidentes rodoviários. As noivas rezavam terços e aguardavam sempre virgens pelo dia seguinte. Os retratos permaneciam amarelecidos nas suas molduras empoeiradas sobre os eternos napperons. Os homens puxavam cigarros e os cigarros deixavam-se fumar. As portas dos lares fechavam-se e lá dentro pessoas-animais gritavam.
Tinha chegado sexta-feira.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Lixo

E eles regressam e trazem consigo caixotes pesados.
Caixotes pesados, que trazem vazios.
E eles carregam-nos às costas.
E eles erguem-nos com os seus fortes braços, calcorreando ruas infinitas,
Sem temer os olhares indiferentes de toda a gente.

À noite, enquanto dormes.
À noite, enquanto caminhas pelo corredor da tua pequena casa, sonolento.
À noite, enquanto apagas a luz, desesperado.

O lixo à tua porta, parte para sempre.
O lixo que te atormenta, rompe os sacos e espalha-se no chão.
E eles apanham-no.
E eles recolhem-no.
E eles retiram-no do teu campo de visão.

E o lixo que tu és, ficará para sempre fechado em vácuo.
Num saco, a um canto do quarteirão.
Não és orgânico, nem tão pouco reciclável.
E não há quem te possa carregar.

E no entanto, eles partem e levam consigo caixotes ainda mais pesados.