quarta-feira, 10 de março de 2010

Chovia II

Sempre o inquietara a forma hipócrita como os homens da meteorologia anunciavam que amanhã iria ser mais-um-lindo-dia-de-sol. Por diversas vezes, cuspiu no televisor depois de ouvir - outra vez! - essa mentira. Por diversas outras, chegou a dar um pontapé no balde que amparava a água que vinha do tecto. Foram muitas as noites em que observou a água do balde a espalhar-se pelo chão da sua pequena sala. Foram muitos os dias em que resmungou obscenidades acerca das mentiras recorrentes dos homens da meteorologia.
Chegava mesmo a ficar constrangido ao ver os seus vizinhos saírem de casa, carregados de filhos e demais familiares, sem um único guarda-chuva. Sem um único impermeável, meu Deus!! Sentia-se envergonhado com a loucura alheia, com a negligente forma como as pessoas lidavam com a chuva. Escondia a cara, corava, pedia perdão e mudava de nacionalidade sempre que visionava aquele espectáculo decadente protagonizado pelas pessoas debaixo de chuva.
A ele, era cada vez mais complicado perceber porque os meteorologistas teimavam em mentir e porque é que as pessoas se deixavam enganar, ignorando que o céu que contemplavam estava apenas negro de chuva sempre a cair.
Perdeu a cabeça, quando nem em casa conseguiu escapar à eterna intempérie: chovia em todas as divisões; o balde da sala já não era suficiente para amparar a água que se infiltrava em toda a estrutura; o sofá e a cama, ensopados, eram a personificação do desconforto; a humidade entranhara-se nos seus ossos e nos seus bens; os seus dedos, engelhados, já não tinham cor nem força, nem tão pouco reflectiam vida; os seus livros eram pasta de papel e tudo o resto, bolor.
Acreditando num sol brilhante e quente para além da morte, afogou-se na banheira com a água da chuva recolhida pelo balde da sala, a mesma água que já há muito o apagava dos anais da humanidade.
Tranquilo e alheio à chuva que teimava em cair, encheu os pulmões de água e deixou-se entrar numa outra dimensão. Num misto de lucidez e irrealidade, de fé e clarividência, findou-se a meio de um murmúrio: As pessoas! As pes-so-as! Meu Deus, perdoai-Lhes!

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