terça-feira, 3 de março de 2009

A fila

Chego e sou mais uma vez a pessoa que fica no fim da fila. Eu, aqui me prostro: sou a última. A última na fila que tem mais de oitenta pessoas encostadas às montras das lojas, das pastelarias e dos mini-mercados ainda fechados.
As montras injectam-nos móveis design, móveis por medida, talismãs e livros de auto-ajuda. Os mini-mercados oferecem-nos os preços mais baixos do mercado. Nas sapatarias comemoram-se os últimos dias de saldos com sapatos a sessenta e tal euros depois de um generoso desconto de 30%.
Do outro lado da rua, prédios imponentes de cinco e seis andares fazem adivinhar outros tempos de glória. Contudo, o passar dos anos e o acentuar da miséria trouxeram-lhes uma roupagem menos chique. Dos espaçosos terraços com vista desafogada, pouco sobra. Estão todos ocupados com construções ilegais feitas dos mais inflamáveis materiais e cobertas com telhados de zinco. Nem os pombos moram mais ali. Só pessoas. Porcas. Tristes. Indiferentes áquilo que se passa lá em baixo. Indiferentes à sua própria miséria. Indiferentes até às roupas que deixam estendidas semanas a fio até ganharem o cheiro e a cor da poluição.
Descem a rua autocarros. Miúdos com mochilas às costas. Homens com cigarros na boca e jornais diários debaixo dos braços. Uma senhora de cor com um majestoso casaco de peles. Um rapaz engraçado com uma guitarra às costas. Passam carros topo de gama em tamanho número que quase me convenço de que vivemos num rico país. Carros que passam com pessoas que não se interessam por aquilo que as rodeia, a não ser que o sinal fique vermelho.
Das pessoas na fila, há de tudo. Desde candidatos a morar em pombais até pessoas que se julgavam já em idade de reforma. Brasileiros. Ucrânianos. Africanos. Prostitutas reformadas. Mães desdentadas com filhos ao colo. Um tipo com ar de quem gosta de reggae, outro com ar de quem não diz que não a uma bebida forte logo pela manhã. Um casal de namorados fora de contexto. E sempre, uma grande percentagem de Chicos com a mania que são espertos.
À porta, são distribuídas senhas cor-de-rosa por uma senhora loira, muito simpática e atenciosa. Talvez só se encontre ali para contrariar a fama destas instituições ou apenas para nos fazer esquecer o dia cinzento e frio que está lá fora. Ordeiramente, a fila avança. As pessoas recebem a senha cor-de-rosa, ou são encaminhadas para a mais simples e despachada senha branca. Lá em cima, haverá uma doutora que atenderá um a um cada um de nós. Processo demorado que a poucos dos presentes trará resultados positivos.
Finda a distribuição das senhas, a doutora lá de cima comunica através do segurança semi-careca-com-o-pouco-cabelo-que-lhe-sobra-pintado-de-preto, que até à senha 25 poderão ficar e que os restantes poderão ir almoçar e voltar à tarde. Uns compreendem e saem. Outros compreendem e sentam-se a ler as suas revistas ou os seus livros. Mas há sempre os incompreendidos. Desses, há um que diz que o que fazia falta era fazerem ao "gajo" o mesmo que fizeram ao Nino Vieira. E sublinha que a pena disto tudo é ninguém se chegar à frente.
Pergunto-me: porque refilamos com a falta de iniciativa dos nossos compatriotas? Se ninguém se chega à frente para fazer o que faz realmente falta, cheguemo-nos nós então. Se é essa a nossa vontade e determinação. Mas o Centro de Emprego é isso mesmo: uma miscelândia de pessoas sem coragem de se chegarem à frente nem vontade de lutarem por aquilo que realmente lhes faz falta. E não pretendo generalizar, mas aviso que é certamente a grande maioria. Utentes e funcionários, todos incluídos.
Volto à tarde e a doutora ainda só atendeu até à senha cor-de-rosa número 12. A minha é o número 32, o que me alivia e me leva a pensar com os meus botões: ainda bem que pertenço ao grupo que pode ir almoçar às 10 horas da manhã.

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