sábado, 26 de junho de 2010

Crise

Da crise, não se fala. Mal são ditas as primeiras letras, alguém muda bruscamente de assunto. Pior, é que tudo o resto de que se possa falar, entre cigarros e amigos vai parar sempre ao mesmo, por mil e uma voltas que sejam dadas lá vem ela: a crise.
Há uma crise que é acompanhada sempre pelo mesmo adjectivo: generalizada. Juntam-se-lhe os valores, as finanças, os empregos, as tristezas e obtém-se o pacote completo. É o constante contar que nada está bem, quando há o esquecimento constante de que se está entre amigos, entre cigarros e que a crise, seja de que tamanho for, ou de que credo ou cor, não conseguiu enfraquecer as amizades e os amores, quanto mais apagar as beatas já meio esborrachadas nos cinzeiros.
Mas de crise não se fala. Fala-se apenas do desemprego, da falta de dinheiro, do futuro negro que se avizinha ali mesmo ao lado, ali mesmo à esquina. Crise, a palavra, é para os telejornais e para os políticos. Uns comprados diariamente, outros eleitos por sufrágio universal. Ambos levianamente, claro está.
Há uma crise de ideias. As conversas estancam no mesmo. Do lado pessimista, a crise. Do lado optimista, o futebol. Se por malfadado acaso, alguém não gosta de sua alteza desportiva, fica-se meia-hora (ou o resto do dia) em silêncio e depois retoma-se o outro e único assunto principal, que envolve sempre a decadência social que supostamente se vive.
Há uma crise que se esquece dos olhares bonitos, das mãos que se dão. Há uma crise cega que não consegue perceber que o mar cheira a mar, que o céu é azul como sempre, que os pólens trazem a promessa de novas e mais belas flores. Há uma crise que se esquece que a chuva rega, que o sol dá vida. Há uma crise que não aprecia abraços, que não pensa nos entes queridos. Há uma crise que perdeu completamente os sentidos e negligencia um almoço de domingo acabado de fazer, um copo de vinho pronto a brindar. Há uma crise que não percebe que um corpo molhado e salgado é mais belo que outro qualquer que apareça esculpido nas primeiras páginas desses jornais que só vendem crises.
Há um crise que ofusca. E dessa tenho medo.

2 comentários:

Alberto Leyland disse...

Oh lá. Isto está crítico. A crise permite-te ver (e escrever) sobre coisas positivas? ainda que estejam em crise?

Cristina H. disse...

A crise passa-me ao lado, excepto em dias de pagar contas.