sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Vestido Azul

Visto secretamente o vestido azul, aquele com que me imaginas a abrir-te a porta, a mostrar-te as divisões da casa, a convidar-te para um striptease lento, rebuscado, numa manhã de cheiros invernosos. Caí na armadilha de te incitar à violência doméstica, de mordaça na boca, ajoelhado, a contemplar-me, a pedir-me outra e outra vez que não o tire, o vestido azul, a musa do teu contentamento. Estarei certa quando digo que não te vi, uma única vez, a procurar, nas nossas palavras trocadas, a chave da minha casa? Estarei errada, certamente, quando te atribuo as culpas dos suspiros fugazes que, aqui e ali, com e sem vestido, vou largando enquanto te imagino, a ti e ao teu corpo, colados ao meu, separados os dois apenas por um fino tecido de Verão? Se nos masturbamos em uníssono, encontro argumentos para negá-lo, a pés juntos, sob juramento, que não. Se me excito com a hipótese da tua excitação, logo atribuo culpas à solidão, a esta necessidade de contemplação, completamente desnecessária, quando lá em baixo existe um talho, onde se corta carne fresca, ainda em sangue, exibindo traços demorados de matança, grunhidos sufocados pelas máquinas. E o meu coração, ateu, reza para que todo o sangue seja suficiente, chegue aonde tem que chegar, antes mesmo que o sol espreite por entre a neblina do rio. E as minhas veias, salientes, quentes. E tu, sobreviverás à efemeridade desta nossa fantasia? Se somos carne ou apenas espectros, se ao espelho nada vemos para além daquilo que fomos no passado, antes de nós, mesmo sabendo que não haverá nada durante, nem após. Apenas. Que cores queres que eu nos pinte na imaginação? Do azul, o vestido. Molhado. Suor. Excitação. Cinzentos, nós. Acordo agarrada aos lençóis, pedindo mais, pedindo perdão. Ocorre-me o medo, não a palavra, não a sensação, como se alguma vez alguém me condenasse a um celibato manchado de pecado e auto-flagelação. Como se fosse uma vertigem. E tu agarras-me, no meu pensamento, em pleno tormento, dizes-me para parar antes de começar. Calas-me e o teu olhar. Aquele que fixei, mesmo antes de saber que era para o recordar, agarrada ao que tenho e ao que não tenho, oscilando entre ordens: Vem! Vem-te! Não venhas! Não te venhas! Corando com o indecoro de toda a situação. Olhando para baixo, não por submissão, mas por preguiça. Procrastinei no prazer e na vida. Não em ti. Nunca te amei, nunca te idolatrei, sei exactamente o que me és, o que te sou. Um vestido de Verão. Somente uma moda a preço baixo, com nada por baixo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Escreves tão bem.
SrMau